A ESCRITA COMO RESISTÊNCIA

Paulo Silvio Ferreira[1]

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar quatro publicações que levam em conta diferentes perspectivas de narrar histórias e experiências, a partir de um eixo temático trazido em cada obra. A metodologia utilizada na coleta dos depoimentos que compõem as referidas publicações é a pesquisa narrativa. Para a organização das obras, partimos do pressuposto de que educação e vida estão interligadas e que os grandes avanços preconizados nas leis, muitas vezes, não saem do papel porque não levamos em consideração a história de cada pessoa, que é única. Defendemos que, quando conhecemos a história das pessoas, aproximamo-nos do ser humano que há por trás dela, e aí estão dadas as condições para os avanços tão desejados. Acreditamos que isso é possível quando nos deparamos com a sinceridade absoluta com que os autores relataram suas histórias de vida, estimulando outras autorias, possibilitando todo tipo de resistência a uma sociedade que ainda insiste em discriminar e segregar o que entende como diferente do padrão.

Palavras-chave: Educação. Pesquisa. Autoria. Diferenças. Resistência.

Introdução

Os cientistas dizem que somos feitos de átomos,

 mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias.

Eduardo Galeano

Histórias que nos tornam únicos. Histórias que nos revelam. Histórias que reduzem nossa complexidade. Histórias que nos fazem mais humanos. Histórias que nos aproximam. Histórias que nos afetam e nos enchem de afetos. Histórias que desafiam medos e preconceitos. Histórias que nos convidam a resistir.

Acredito que, ao narrarmos nossas histórias, nossas vivências, nossas experiências, nossas dores e alegrias, nossas derrotas e vitórias, possibilitamos nos transformar e também tocar no sensível do outro, que é parte de nós. Assim, passamos a nos compreender como de fato somos: incompletos, humanos.

Defendo que devemos escrever sobre o que fazemos, vivemos e sentimos, como forma de luta por um mundo mais plural e inclusivo. Nestes últimos tempos, tenho me dedicado a organizar histórias e experiências referentes às questões inclusivas da contemporaneidade e publicá-las.

Parto do pressuposto de que as pessoas escrevem por inúmeros motivos: para seu autoconhecimento, para compreender o mundo em que vivem, para não sobrecarregar amigos e parentes com seus assuntos pessoais, para melhorar o conhecimento sobre a vida, para externar sentimentos, para partilhar conhecimentos. Enfim, são infinitos os motivos que mobilizam as pessoas para o ato da escrita.

A necessidade de compreender a sociedade plural que se apresenta todos os dias no chão da escola e a maneira como isso reverbera nesses espaços e nas relações que aí se dão impulsionou-me, na condição de gestor, a organizar quatro livros.

O objetivo dos quatro lançamentos foi possibilitar que o leitor se questione sobre quem é o outro. O outro que não se encontra ao olhar no espelho, na imagem ali refletida. O outro que o ajuda a mergulhar em si mesmo, que o faz questionar verdades cristalizadas e reconhecer que a completude só se dá no outro, no outro diferente. O outro que, muitas vezes, incomoda, tira do conforto, do lugar-comum, que permite compreender que o mesmo mundo que o serve e o completa serve também ao outro, ao outro diferente. Enfim, que possa entender que, para o outro, o outro sou eu.

Em 2013, na condição de organizador, publiquei a primeira obra, “Escola pesquisadora: uma possibilidade de formação” (FERREIRA, 2013), cujo evento de lançamento aconteceu em 2014, no Centro Educacional Unificado (CEU) Sapopemba, Distrito de Sapopemba, e contou com a presença do Prof. Dr. Pedro Demo, da Universidade de Brasília, que proferiu uma palestra sobre o tema. O livro reúne 18 artigos científicos escritos por 26 educadores, docentes e gestores atuantes na Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Professor Giuseppe Tavolaro, da Diretoria Regional de Educação (DRE) de São Mateus.

Os textos são resultado de um processo de discussão no horário de trabalho coletivo da unidade educacional, cuja temática é a formação de professores e gestores, objetivando a construção de uma escola pesquisadora, qual seja, aquela que busca soluções para as situações e os problemas que, cotidianamente, apresentam-se no chão da escola e que entende o ato da pesquisa como uma possibilidade de alcançar uma educação com gestores, professores e alunos construtores de seu próprio conhecimento.

Em 25 de maio de 2018, também como organizador, lancei, com o apoio do Sindicato dos Especialistas em Educação do Ensino Público Municipal de São Paulo (Sinesp), o livro “Somos todos deficientes: só nos completamos no outro e no mundo” (FERREIRA, 2018), com 21 histórias de educadores e pais sobre a questão da deficiência/diferença.

O objetivo do livro foi discutir as diversas questões suscitadas pela deficiência a partir de quem vive essa realidade, especialmente os educadores. Buscou-se atingir o leitor sensibilizando-o, para que visite suas concepções após a leitura das histórias narradas, permitindo-se despir de qualquer forma de preconceito e aproximar-se dos sujeitos que apresentam uma condição de existência marcada pela diferença. Intencionou-se que o diferente aparecesse com toda sua potencialidade, deixando de ser desconhecido e, assim sendo, não se apresentando nem assustador nem temido.

Em 30 de agosto de 2019, com o apoio do Sindicato dos Professores e Funcionários Municipais de São Paulo (Aprofem), lancei, como organizador, o livro “Amores (im)possíveis: narrativas sobre afeto e resistência” (FERREIRA, 2019), com 10 histórias que abordam a questão da diversidade sexual e de gênero, a partir de relatos de educadores da rede e de uma mãe.

A obra é uma coletânea composta de 10 textos autobiográficos que buscaram relatar, de forma corajosa, a experiência, as dores e as delícias do sujeito que está ligado, de alguma forma, a questões relacionadas à orientação sexual ou à identidade de gênero que destoa dos padrões socialmente aceitos e legitimados. Em cada linha, os autores buscaram imprimir, de forma leve, porém firme, suas vivências sobre o universo das relações homoafetivas, a partir de suas percepções e seus pontos de vista, partindo do particular, na tentativa de (re)significar e ampliar esse debate tão necessário nos dias atuais. Apostamos que o respeito à diversidade, em todos os sentidos, ainda é o melhor caminho a ser perseguido e percorrido, defendendo um mundo livre de qualquer preconceito, onde os amores sejam possíveis.

Em 2021, com o apoio do Centro do Professorado Paulista (CPP), lancei, também como organizador, o quarto livro, “Mulheres, demasiadamente mulheres: narrativas sobre cores, dores e sorrisos”, com 21 histórias de mulheres educadoras.

Historicamente, é reservada às mulheres uma posição hierarquicamente inferior, que se potencializa quando a sociedade constrói e massifica a ideia da existência de mulheres perfeitas, sempre belas, recatadas e do lar, imunes ao tempo, ao espaço e às condições sociais e físicas, o que restringe seu espaço na vida pública, limitando avanços mais significativos no campo socioeconômico. O tema central do livro é o enfrentamento de preconceitos, discriminações e opressões. As histórias das autoras são ferramentas oferecidas à sociedade para ajudar a romper com a realidade opressiva vivida por mulheres, em especial, as negras.

Ao mesmo tempo, entendo que não há dores que não possam ser superadas e que os sorrisos são de alegria, sim, mas também significam resistência, resiliência, vitórias sobre o improvável, os obstáculos e os infortúnios que compõem a vida de milhões de mulheres. Espero que os sorrisos advindos dessas histórias sejam compartilhados entre todas as mulheres, mas que também sejam comungados com todos os homens e signifiquem a compreensão definitiva de que caminhamos juntos, homens e mulheres.

Desenvolvimento

O desenvolvimento dos quatro livros teve como perspectiva a produção de textos autobiográficos de diferentes autores, em geral ligados à educação, os quais buscaram relatar, de forma corajosa, suas experiências de vida frente a uma sociedade em constante transformação.

Os autores foram convidados a contar suas histórias de vida, que tinham uma relação direta com o tema de cada um dos livros. Não houve nenhum pagamento aos autores. Eles embarcaram no projeto por acreditarem que suas narrativas poderiam ser mais uma forma de compreender a experiência humana e, com isso, construir uma escola que seja capaz de eliminar qualquer tipo de prática excludente e, assim, assegurar uma educação de qualidade para todos.

Metodologia

A metodologia utilizada no processo de escrita é a pesquisa narrativa. Segundo Clandinin e Conelly (2011), a autobiografia é um recontar, uma reconstrução particular da narrativa de determinado sujeito, uma representação que pode ser utilizada, portanto, em diferentes possibilidades.

Conclusão

Apesar de todos os avanços promovidos nas últimas décadas, a escola ainda é pautada pelo modelo tradicional de formação, ou seja, ela ainda está amparada no excesso de disciplina, no ordenamento, na atenção subserviente e constante, e não na criatividade. Assim, não tem dado conta das tarefas que a escola deste novo século está incumbida, que é estar aberta para a diversidade de sujeitos e de sujeitos concretos, com suas possibilidades e limitações, proposta clara e objetiva do que chamamos “inclusão”, que pressupõe uma outra escola: problematizadora, debatedora, pesquisadora, com capacidade de imaginar e propor diferentes soluções para equacionar os vários questionamentos que a ela se impõem.

A solução não virá através do “achismo”, mas de um processo de formação contínua e de qualidade que permita ampliar a compreensão e a criticidade sobre o que está ocorrendo no mundo atual e suas implicações no processo educativo, especialmente as discussões sobre inclusão de pessoas com suas diferenças.

Neste sentido, Demo (2011) afirma que a pesquisa precisa ser internalizada como atitude cotidiana, e não apenas como atividade especial, de gente especial, para momentos e salários especiais. Ao contrário, representa, sobretudo, a maneira consciente e contributiva de andar na vida, todo dia, toda hora. O autor prossegue dizendo que, para ele, o aluno pode não saber ler e escrever, mas nem por isso deixa de ser um sujeito histórico, pelo menos potencial.

Acredito que caberá a essa escola pesquisadora, em todos os âmbitos das relações humanas:

  • considerar que as diferenças humanas não são um problema ou mesmo uma incapacidade. Portanto deve partir da ideia de que não é o sujeito que precisa se adaptar à sociedade/escola, mas a sociedade/escola é que precisa se adaptar às especificidades dos indivíduos, respeitando as diferenças e as necessidades de todos e de cada um;
  • questionar e problematizar os conceitos de normalidade/anormalidade, os padrões estabelecidos de produtividade, funcionalidade, eficiência e estética que organizam a sociedade moderna atual e que promovem a exclusão;
  • conhecer programas de formação profissional, inclusive na modalidade a distância, em todos os âmbitos, também em instituições privadas, e estar disponível para a realização de cursos específicos que ampliem o conhecimento das características peculiares dos sujeitos;
  • identificar facilitadores de comunicação, como redes de computadores, programas, plataformas digitais e aplicativos, entre outros;
  • conhecer, reconhecer, nomear e eliminar todas as barreiras atitudinais, pedagógicas, arquitetônicas e de comunicação, possibilitando que todos os espaços e os ambientes escolares sejam inclusivos, permitindo, assim, a equiparação de oportunidades;
  • estabelecer intercâmbio de informações entre a família, as equipes de saúde, os órgãos intermediários e os centrais das secretarias de educação e os educadores, incluindo os administrativos, objetivando a ampliação de envolvimento e conscientização no que diz respeito à aceitação das diferenças humanas;
  • conhecer a legislação pertinente: Constituição, legislações federal, estadual e municipal, decretos, portarias, normativas, resoluções, avisos, planos, políticas, diretrizes, tratados, pactos e convenções internacionais, possibilitando embasamento legal na tomada de decisões;
  • conhecer estudos e pesquisas quantitativas e qualitativas que contextualizem a questão das diferenças, embasando a discussão, de forma permanente, sobre as diferentes concepções, buscando um alinhamento conceitual e permitindo planejar, coletivamente, práticas e adequações pedagógicas, inclusive as avaliativas, que potencializem gestores, professores, alunos e demais envolvidos a se apropriarem dos conhecimentos socialmente construídos;
  • conhecer e promover políticas públicas consequentes, articuladas, inter e intrassetoriais, procurando estabelecer relações e conexões entre diferença e pobreza, diferença e gênero, diferença e raça (etnia), e não se limitar a ações pontuais, específicas e momentâneas, pois a questão da diferença e da inclusão não deve ser entendida como fato isolado, muito menos de responsabilidade única da escola;
  • buscar apoio especializado na literatura, na produção universitária, em equipes multi e interdisciplinares e em pareceres de especialistas e de outros profissionais que possuam um conhecimento específico que o professor não tenha sobre cada temática;
  • conhecer as redes de proteção social e as entidades que nela desenvolvem um trabalho, ampliando as possibilidades de garantia de direitos;
  • conhecer as políticas afirmativas garantidas em lei, permitindo ampliar novas oportunidades.

Os tempos e os espaços da escola, suas bases curriculares, a avaliação, a produção e a reprodução de conhecimentos e padrões de comportamento, a hierarquia professor-aluno, a relação com a família, com a comunidade e com a sociedade, enfim, os processos educacionais estão em constante mutação, na busca de novos vínculos que respondam às demandas reais. A escola não pode e não deve se fechar em si mesma na busca de respostas e soluções para enfrentar esses desafios. Essas mudanças exigem um novo tipo de professor/gestor: mais aberto, mais participativo, mais criativo, mais flexível, mais tolerante, mais debatedor e com uma nova postura profissional, centrado na pesquisa, no conhecimento, na reflexão sobre a realidade e na produção de saberes.

Nessas condições, faz-se necessário estarmos de mente e coração abertos para as mudanças que nos são apresentadas, afinal temos uma responsabilidade enorme na discussão e no enfrentamento desses desafios. O debate se faz cada vez mais necessário, mas não entre iguais, pois isso já ocorre; o momento é propício para o debate entre os diferentes, entre as diferenças.

Precisamos reconhecer e entender que também convivemos com novos referenciais, com novos saberes, que não são verdades absolutas, permanentes e inflexíveis, mas provisórios e inacabados, que provocam incertezas e indeterminações em nosso dia a dia. Precisamos estar abertos ao exercício do diferente, ao contraditório, ao desacordo, à crítica, à oposição.

Como educadores, não podemos mais ter posições dogmáticas em relação a qualquer temática; não podemos nos contentar com os monólogos, com aquilo que agrada aos nossos ouvidos e olhares. Temos de aprender a fazer concessões e a compartilhar experiências alheias. Precisamos permitir uma interação antagônica e, através da discussão e dos problemas que nos são inerentes, encontrar caminhos para um trabalho mais prazeroso e de melhor qualidade. Não se trata, dessa forma, de debater por debater – ou, como muitos dizem, que a controvérsia é pura perda de tempo e provoca desestímulo –, mas de possibilitar a tomada de decisões com a lucidez compartilhada com nossos pares.

Precisamos sair do anonimato e nos inserir no debate da complexidade atual, sendo protagonistas de uma nova perspectiva: que o mundo e, em consequência, a educação sejam ética e esteticamente melhores.

Sendo assim, busquei, através da publicação dos quatro livros, defender que a escola pesquisadora é a resposta aos desafios da inclusão e a centralidade na formação de professores e, especialmente, de gestores.

Referências

CLANDININ, D. J.; CONELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Tradução do Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de Professores (ILEEL/UFU). Uberlândia: Edufu, 2011.

DEMO, P. Educar pela pesquisa. 9. ed. revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. (Coleção educação contemporânea)

FERREIRA, P. S. (Org.). Escola pesquisadora: uma possibilidade de formação. Curitiba: Editora CRV, 2013.

______. (Org.). Somos todos deficientes: só nos completamos no outro e no mundo. Curitiba: Editora Mourasa, 2018.

______. (Org.). Amores (im)possíveis: narrativas sobre afeto e resistência. Curitiba: Editora CRV, 2019.

______. (Org.). Mulheres, demasiadamente mulheres: narrativas sobre cores, dores e sorrisos. Curitiba: Editora CRV, 2020.

 

[1] Especialista em Formação de Professores com ênfase no Magistério Superior pelo Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Graduado em Ciências Sociais pela Fundação Santo André e em Pedagogia pela Universidade do Grande ABC. Diretor de escola efetivo na Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof. Giuseppe Tavolaro, da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP). Organizador dos livros: “Mulheres, demasiadamente mulheres: narrativas sobre cores, dores e sorrisos” (2021, Editora CRV), “Amores (im)possíveis: narrativas sobre afeto e resistência” (2019, Editora CRV), “Somos todos deficientes: só nos completamos no outro e no mundo” (2018, Editora Mourasa) e “Escola pesquisadora: uma possibilidade de formação” (2013, Editora CRV). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 


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