CONTRIBUIÇÕES PARA A INTERPRETAÇÃO DE FENÔMENOS POLÍTICOS E SOCIAIS À LUZ DO ENFOQUE TEÓRICO DE J. B. THOMPSON

Rosana Capputi Borges[1]

Resumo

Este artigo busca expor alguns pressupostos da teoria de John B. Thompson sobre o conceito de “ideologia”, identificado em sua obra “Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa”, cuja sistematização nos fornece pistas para interpretar criticamente discursos que circulam rotineiramente nas esferas de nossa vida individual e coletiva e que, muitas vezes, não são pensados de forma consciente. O esforço concentra-se em estimular a reflexão dos profissionais da Educação Pública e demais atores da sociedade, levando-os a desvelar as maneiras com que o sentido, atrelado às formas simbólicas, serve para sustentar e legitimar relações de dominação e, assim, a posicionarem-se criticamente sobre determinados assuntos.

Palavras-chave: Ideologia. Educação. Discursos. Políticas públicas.

Introdução

No presente artigo, busco expor alguns pressupostos da teoria de John B. Thompson sobre o conceito de “ideologia”, identificado em sua obra “Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa” (THOMPSON, 2011). Pretendo, assim, contribuir para a ampliação de subsídios teóricos que auxiliem os(as) profissionais da Educação Pública (EP) e a sociedade em geral na análise crítica de discursos que circulam nos diversos contextos sociais cotidianos e que, muitas vezes, não são pensados de forma consciente. Frequentemente, são discursos ultraconservadores e neoliberais, que provocam consequências diretas na atuação dos profissionais da EP brasileira e, consequentemente, no processo de aprendizagem e de formação dos bebês, das crianças e dos jovens. Alguns desses discursos são proferidos de forma muito sutil, entretanto servem-se de estratégias que, em circunstâncias sócio-históricas específicas, são usadas para estabelecer e sustentar relações de dominação, bem como para manipular e controlar grupos. Todavia essas estratégias precisam ser reveladas para, então, serem combatidas e enfrentadas.

O conceito de “ideologia” na perspectiva de J. B. Thompson: uma breve revisão

É evidente que, ao falar sobre o conceito de ideologia, reconheço[2] todo um conjunto de abordagens dentro dos campos filosófico, legal, sociológico e político, entre outros, que tratam do tema. Neste texto, elegi adotar o enfoque de Thompson (2011), por considerar que seu estudo permite apreender e compreender a produção e a sustentação de desigualdades sociais presentes em nossa sociedade.

Em sua obra “Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa”, Thompson (2011) faz uma análise crítica das formulações do termo “ideologia”, a partir da revisão dos vários sentidos atribuídos ao conceito, propostos por diferentes pensadores, como Destutt de Tracy, Lenin, Lukács, Mannheim, Napoleão, Marx e outros[3]. A partir dessa revisão, Thompson (2011, p. 16) constrói sua própria concepção crítica de “ideologia”: “ideologia é o sentido a serviço do poder”. Para o autor, estudar ideologia é compreender e expor as maneiras pelas quais as formas simbólicas são usadas para construir e manter relações de dominação.

Sua revisão histórica teve início em 1796, quando o filósofo francês Destutt de Tracy, ao criar a palavra, deu-lhe o primeiro de seus significados, conceituando o termo “ideologia” de modo neutro, em seu sentido literal, como suposta “ciência das ideias”, tratadas como fenômenos naturais que exprimiam a relação entre o homem e o meio natural de vida. Tracy (1796, apud THOMPSON, 2011) concebeu a ideologia como primeira ciência, dado que todo conhecimento científico abrangeria a combinação de ideias.

Poucos anos depois, de acordo com Thompson (2011), Napoleão Bonaparte[4] apropriou-se do termo “ideologia”, alterando sua conotação inicial e atribuindo-lhe um sentido eminentemente pejorativo. A ideologia tornou-se, então, uma teoria entre outras, deixando de referir-se apenas à ciência das ideias para referir-se a um corpo de ideias que, para Napoleão, seria errôneo e estaria divorciado das realidades práticas da vida política: “A ideologia como ciência positiva e eminente, digna do mais alto respeito, gradualmente deu lugar a uma ideologia como ideias abstratas e ilusórias, digna apenas de ridicularização e desprezo” (THOMPSON, 2011, p. 48).

A partir desse início na trajetória de conceituação do termo, Thompson (2011) identificou, no pensamento ocidental, duas tendências antagônicas quanto aos sentidos atribuídos à ideologia: um sentido neutro e um sentido crítico, pejorativo, negativo. As concepções neutras podem ser entendidas como um conjunto de pensamentos, crenças e valores que atuam como uma espécie de “cimento social”, um conjunto de ideias que, compartilhadas, conseguem estabilizar sociedades ou grupos sociais. São aquelas que tentam caracterizar fenômenos como “ideologia”, ou ideológicos, sem implicar que esses fenômenos sejam necessariamente enganadores e ilusórios. Thompson (2011) identificou concepções neutras em textos de pensadores dos séculos XIX e XX, como Lênin (1969)[5], Lukács (1971)[6] e em parte do legado de Mannheim[7].

Em contraste com as concepções neutras, as concepções críticas assumem sentido negativo ou pejorativo e concebem que o fenômeno caracterizado como ideológico é enganador, ilusório ou parcial. Thompson (2011) apreende outro conjunto de pensadores – Napoleão, Marx[8] e parte do legado de Mannheim – que compartilham esse sentido negativo, crítico ou pejorativo na conceituação de “ideologia”, ainda que o caráter de negatividade não seja compartilhado.

Thompson (2011) destaca as concepções desenvolvidas por Marx e, mantendo a negatividade do conceito, retira o caráter marxiano de ilusão (da realidade) ou de falsa consciência e concentra-se no aspecto das relações de dominação. Em sua obra, o autor identifica três conceituações de “ideologia”: polêmica, epifenomênica e latente. Vejamos, a seguir, como Thompson (2011) sintetiza cada uma dessas concepções marxianas.

A concepção polêmica é uma “doutrina teórica e uma atividade que olha erroneamente as ideias como autônomas e eficazes e que não consegue compreender as condições reais e as características da vida sócio-histórica” (THOMPSON, 2011, p. 51).

A concepção epifenomênica refere-se a um “sistema de ideias que expressa os interesses da classe dominante, mas que representa relações de classe de uma forma ilusória” (THOMPSON, 2011, p. 54).

A concepção latente é assim denominada porque, para o autor, Marx chama a atenção para o fato de que construções simbólicas, costumes e tradições são empregados para provocar interferências nas relações sociais, podendo favorecer ou impedir mudanças sociais. Essa concepção diz respeito à ideologia como um sistema de representação que sustenta relações de dominação mediante orientação de pessoas para o passado, em vez de para o futuro ou para símbolos e ideais que ocultam as relações de classe.

De acordo com Thompson (2011), a análise de Marx sobre os eventos que levaram ao golpe de estado de Napoleão Bonaparte[9] dá um papel central às formas simbólicas que incluem a tradição e que, em um tempo de crise, podem levar um povo de volta ao passado, servindo para sustentar uma ordem social opressiva que o impede de perceber seus interesses coletivos e de agir para a mudança social.

É essa concepção o marco inicial da proposta de Thompson (2011). Ponderadamente, o autor assinala que Marx (1852)[10] não empregou o termo “ideologia” diretamente, mas que apreendeu essa concepção no livro “Dezoito Brumário”, de Luis Bonaparte, e utilizou termos como “ilusões”, “ideias fixas” ou “espíritos”:

A tradição de todas as gerações já mortas se impõe como um pesadelo na mente dos vivos. E exatamente quando eles parecem engajados em transformar a si mesmos e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente em tais períodos de crise revolucionária, eles ansiosamente esconjuram os espíritos do passado em seu auxílio e deles tomam emprestados nomes, gritos de guerra e costumes, a fim de apresentar a nova cena da história mundial com esse disfarce honroso e com esta linguagem emprestada (MARX, 1852, apud THOMPSON, 2011, p. 59).

Apesar de inspirar-se na concepção de “ideologia” que denomina “latente”, Thompson (2011) apresenta aspectos que diferem da concepção marxiana. Para o autor, a principal divergência refere-se à necessidade ou não de que um fenômeno, para que seja considerado ideológico, tenha de ser ilusório, mascarador da realidade e produtor de falsa consciência. Assim, segundo Thompson (2011), as formas simbólicas não precisam ser necessariamente errôneas e ilusórias para que sejam ideológicas; estas seriam características possíveis, mas não necessárias. Para o autor, a dimensão ilusória, mascaradora da realidade seria apenas um dos modos de operação da ideologia, e não o único, como veremos adiante.

Thompson (2011) também expande a proposta marxiana, no que tange às relações de dominação. Se, para Marx, elas se restringem às relações de classe, para o autor, outras condições ou fatores podem estabelecer relações de poder sistematicamente assimétricas, nas quais outros eixos de desigualdades, além das relações de classe, estão envolvidos, como gênero, estado-nação, origem étnica e idade. O autor salienta:

[...] parece-me fundamental reconhecer que existem relações de poder sistematicamente assimétricas que estão baseadas em fatores diferentes dos de classe – que estão baseadas, por exemplo, em fatores de sexo, idade, origem étnica – e parece-me essencial ampliar o marco referencial para a análise da ideologia para dar conta desses fatores. A teoria geral [...] tende a sobrevalorizar a importância da classe na análise da ideologia e a marginalizar outros tipos de dominação, tais como as formas simbólicas que servem para garanti-las (THOMPSON, 2011, p. 127).

Após o conjunto de análises e argumentos aqui sintetizados, Thompson (2011, p. 79, grifos do autor) propõe sua conceituação de “ideologia” como as maneiras pelas quais:

[...] o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas.

As formas simbólicas são definidas pelo autor como sendo um “amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e pelos outros como construtos significativos” (THOMPSON, 2011, p. 79). Serão ideológicas se usadas na produção, transmissão, recepção e manutenção das relações assimétricas de poder.

Thompson (2011) faz uma distinção entre poder e dominação: poder é entendido como a capacidade conferida a indivíduos, social ou institucionalmente, que lhes permite tomar decisões, alcançar seus objetivos e agir de acordo com seus próprios interesses; dominação, por sua vez, é conceituada como a maneira permanente de alguns grupos específicos no poder, mantendo-se inacessível a outros grupos ou a outros indivíduos, ou seja, quando relações de poder estabelecidas são sistematicamente assimétricas.

O autor adota uma análise crítica de ideologia, cujo enfoque está orientado para a análise concreta dos fenômenos sócio-históricos, interessando-se, fundamentalmente, pelas maneiras como as formas simbólicas entrecruzam-se com as relações de poder e pelas maneiras como o sentido constrói e sustenta relações de dominação.

A ideologia e sua relação com o conceito de “cultura moderna”

Assim que apresentou seu conceito de “ideologia”, Thompson (2011) realizou uma breve revisão de alguns dos principais episódios no desenvolvimento do conceito de “cultura”, para então explicitar sua concepção.

Dessa retrospectiva, destaco a contribuição teórica de Clifford Geertz[11], que, segundo Thompson (2011, p. 176) descreve “cultura” como “padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças”. O autor enfatiza que os fenômenos culturais são fenômenos simbólicos e que o estudo da cultura está essencialmente interessado na interpretação dos símbolos.

Para Thompson (2011), essa definição redirecionou a análise da cultura para o estudo do significado e do simbolismo, mas necessita de complementação. Uma de suas críticas a essa concepção refere-se ao fato de que ela não dá atenção suficiente às relações sociais, particularmente às relações de conflito social e de poder, em contextos socialmente estruturados, dentro dos quais os fenômenos culturais são produzidos, recebidos e transmitidos.

A partir da concepção simbólica elaborada por Clifford Geertz, Thompson (2011) formulou, então, a concepção estrutural de “cultura”, definindo-a como abordagem alternativa para o estudo dos fenômenos culturais, que “devem ser entendidos como formas simbólicas em contextos estruturados; e a análise cultural deve ser vista como o estudo da constituição significativa e da contextualização social das formas simbólicas” (THOMPSON, 2011, p. 181). Na perspectiva do autor, tal concepção envolve tanto a interpretação das formas simbólicas quanto o fato de tais fenômenos estarem inseridos em contextos e processos socialmente estruturados.

O termo “estrutura social” é utilizado por Thompson (2011, p. 197) para referir-se às “assimetrias e diferenças relativamente estáveis que caracterizam os campos de interação e as instituições sociais”. Essas assimetrias e diferenças são caracterizadas pela distribuição de recursos variados e de acesso a estes, ao poder e às oportunidades sociais.

Por essa razão, o autor assinala que a análise da estrutura social deve se engajar na identificação dessas assimetrias e de suas categorias, possibilitando “entender as características sociais dos contextos dentro dos quais os indivíduos agem e interagem” (THOMPSON, 2011, p. 198). Para ele, se, por um lado, as características contextuais são limitadoras e restritivas, por outro, também são produtivas e capacitadoras. Elas tornam possíveis ações e interações, definindo caminhos mais apropriados ou com mais possibilidades de garantir recursos e oportunidades distribuídos igualmente.

Principais modos de operação da ideologia

Thompson (2011), além de conceituar “ideologia” e de relacioná-la com a cultura em contextos sociais estruturados na vida cotidiana, identifica cinco modos principais de sua operação, que são geralmente empregados na construção de formas simbólicas (Quadro 1).

Quadro 1 - Modos de operação da ideologia

Modos gerais

Algumas estratégias típicas de construção simbólica

Legitimação

Racionalização; Universalização; Narrativização

Dissimulação

Deslocamento; Eufemização; Tropo (sinédoque, metonímia, metáfora) (sinédoque, metonímia, mmmemetáforametáfora)

Unificação

Estandardização; Simbolização da unidade

Fragmentação

Diferenciação; Expurgo do outro

Reificação

Naturalização; Eternalização; Nominalização / Passivização

Fonte: Thompson (2011, p. 81)

O autor assinala que tais modos de operação não constituem as únicas maneiras de como a ideologia opera, nem funcionam, necessariamente, de forma independente, podendo sobrepor-se e reforçar-se mutuamente. Ele assevera que essas estratégias podem ou não estar a serviço da dominação, não sendo, portanto, ideológicas em si mesmas, pois dependem de como o sentido pode funcionar em condições sócio-históricas particulares para manter ou gerar relações de dominação.

A seguir, apresentamos uma síntese dos modos de operação da ideologia e as principais estratégias relacionadas a eles.

A legitimação, para Thompson (2011), ocorre quando as relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas como legítimas, justas e dignas de apoio. Está baseada em três fundamentos: racionais, que apelam à legalidade de regras dadas; tradicionais, que apelam à sacralidade de tradições imemoriais, e carismáticos, cujos fundamentos apelam ao caráter excepcional de uma pessoa individual que exerça autoridade. A legitimação pode se expressar em formas simbólicas, através de estratégias de construção simbólica, a saber:

  • racionalização: estratégia pela qual uma forma simbólica é construída em uma cadeia de raciocínios para defender ou justificar um conjunto de relações ou instituições sociais e, assim, induzir uma audiência de que isso é digno de apoio;
  • universalização: diz respeito a acordos institucionais que servem aos interesses de alguns indivíduos e que são apresentados como servindo aos interesses de todos;
  • narrativização: trata-se do emprego de histórias que contam o passado e tratam o presente como parte de uma tradição eterna, muitas vezes inventada para justificar o exercício do poder por aqueles que o detêm.

A dissimulação se dá quando as relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas de um modo que oculte, negue ou, ainda, desvie nossa atenção dos processos sociais existentes. Tipicamente, a dissimulação pode ser expressa pelas seguintes estratégias:

  • deslocamento: consiste na transferência de um termo e de suas conotações positivas ou negativas de um objeto ou pessoa para outro(a);
  • eufemização: descrição ou redescrição de ações, instituições ou relações sociais que buscam uma valorização positiva para uma ação negativa;
  • tropo: uso de figuras de linguagem que podem justificar processos sociais de dominação. Pode configurar-se como sinédoque, metonímia ou metáfora.

A unificação constitui um modo de operação da ideologia por meio do qual as formas simbólicas são utilizadas para construir uma identidade coletiva que desconsidera as diferenças individuais e sociais, podendo estabelecer e sustentar relações de dominação. Suas principais estratégias são:

  • estandardização ou padronização: formas simbólicas são adaptadas a um referencial padrão, que é reconhecido, partilhado e aceito pelo coletivo;
  • simbolização da unidade: envolve a construção de símbolos de unidade, de identidade e de identificação coletivas, que são difundidos através de um ou mais grupos (emblemas, bandeiras, logos).

A ideologia, como fragmentação, refere-se às relações de dominação que podem ser mantidas segmentando pessoas e grupos que possam ser capazes de se transformar em uma ameaça real aos grupos dominantes. A fragmentação pode ser expressa pelas seguintes estratégias:

  • diferenciação: enfatiza as diferenças e as divisões entre pessoas e grupos, fortalecendo a desagregação entre eles, de modo a dificultar seu acesso ao poder;
  • expurgo do outro: as formas simbólicas são empregadas na construção de um inimigo, interno ou externo, retratado como perigoso e ameaçador, contra o qual os indivíduos devem resistir coletivamente ou expurgá-lo.

A reificação é conceituada como o modo de operação da ideologia pelo qual relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pela retratação de uma situação transitória e histórica como natural, atemporal ou permanente. Pode ser expressa pelas seguintes estratégias:

  • naturalização: quando fenômenos sociais ou históricos são retratados como naturais ou inevitáveis;
  • eternalização: quando fenômenos sócio-históricos são esvaziados do caráter histórico, ao serem apresentados como permanentes, imutáveis e recorrentes;
  • nominalização/passivização: a nominalização acontece quando sentenças – ou parte delas – e descrições de ações e dos participantes são transformadas em nomes, de forma a ocultar a ação e o autor. Já a passivização se dá quando os verbos são conjugados na voz passiva, tirando a ênfase sobre o sujeito da ação.

Para que a interpretação da ideologia ocorra, Thompson (2011) assinala que é preciso argumentar e debater, buscar através de evidências, razões e fundamentação dessa interpretação, de modo a fazer uma leitura qualificada da realidade e intervir sobre ela.

Assim, feito esse sobrevoo nos pressupostos teóricos de Thompson (2011), descrevo a seguir, a partir do meu olhar, alguns fenômenos recentes que permeiam nosso contexto sócio-histórico e que suscitam uma análise crítica.

Interpretações possíveis para alguns fenômenos políticos e sociais recentes

Desde 2016, estamos testemunhando um processo veloz de desmonte e desaparelhamento do Estado Brasileiro. No campo da EP, especificamente no município de São Paulo, temos enfrentado situações complexas em prol da EP de qualidade para todos e todas, da manutenção de direitos humanos conquistados arduamente e de melhores condições de trabalho; reivindicações que, em grande parte, vão de encontro às reformas educacionais deflagradas nos últimos tempos. De certo, é imperativo reunirmo-nos em diferentes contextos sociais para discutir ideias e possibilidades de atuação e superar os desafios educacionais e das demais áreas da sociedade, tais como saúde, moradia, emprego e distribuição de renda. Nesses momentos, recebemos, produzimos e transmitimos discursos que podem contribuir tanto para a manutenção como para a transformação da realidade presente.

Temos verificado uma forte presença de grupos políticos que ocupam posições privilegiadas na arena de debates para definição de prioridades em políticas públicas e que têm em comum uma orientação ideológica extremista sobre Estado e Sociedade. Por essa razão, os governos vêm pautando ou sancionando um conjunto de propostas e medidas que causam efeitos danosos tanto para nós, servidores públicos, quanto para a população em geral. Vejamos, a seguir, algumas delas:

  • Emenda Constitucional nº 95/2016 (BRASIL, 2016), que instituiu novo ajuste fiscal que determina o congelamento, por 20 anos, dos gastos públicos operacionais, inviabilizando o cumprimento das metas e das estratégias do Plano Nacional de Educação (PNE);
  • Reforma Trabalhista, sacramentada pela Lei nº 13.467/2017 (BRASIL, 2017a), que foi defendida como necessária para aumentar a empregabilidade, entretanto, desmontou o sistema de relações de trabalho, cortando vários direitos dos trabalhadores;
  • Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC) (BRASIL, 2017b), que atendeu aos ditames de uma agenda global de acordo com as proposições de órgãos multilaterais, por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco);
  • Reforma Previdenciária, aprovada por meio da Emenda Constitucional nº 103/2019 (BRASIL, 2019a), apresentada como necessária para retirar privilégios, mas que, entre as mudanças trazidas, estão o aumento da idade de aposentadoria, a ampliação do tempo mínimo de contribuição e novas alíquotas de contribuição. Restringiu direitos previstos na Constituição Federal de 1988 e abriu caminho para a exploração privada;

·         Projeto de Lei nº 2.401/2019 (BRASIL, 2019b), que dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar (homeschool), a qual, entre tantos outros prejuízos, compromete o direito da criança à convivência social e ao acesso a conhecimentos científicos e humanísticos e a visões de mundo;

  • Projeto de Lei nº 5.595/2020 (BRASIL, 2020a), que pretende incluir a Educação como atividade essencial, quando, na verdade, esconde em seu bojo o fim do direito à greve; 
  • Proposta de Emenda Constitucional nº 32/2020 (BRASIL, 2020b), que propõe uma reforma na administração pública federal, outorga a precarização das carreiras do serviço público e coloca em risco o trabalho prestado à população, entre outros agravos.

Por ora, não é minha opção analisar cada projeto ou política pública adotada, ou defender arduamente meu ponto vista, argumentar ou contra-argumentar, nem discutir profundamente sobre quais são as implicações dessas propostas para gestores, docentes, discentes, bebês, crianças, jovens, adultos, familiares e sociedade em geral. Os exemplos foram trazidos para convidá-los(as) a rever essas medidas e tantas outras em circulação em nossa sociedade, ressignificando-as à luz da teoria de Thompson (2011). Possivelmente, novas interpretações surgirão sobre essa realidade na qual estamos inseridos.

De certo que, subsidiados(as) pelos pressupostos até aqui apresentados, poderemos evidenciar os aspectos ideológicos que movem esses projetos e essas políticas e concluir que esse conjunto de reformas implementado no Brasil é justificado por seus defensores como sendo necessário para propulsionar o país na rota do crescimento econômico, mas que, na realidade, traz em seu bojo discursos neoliberais, ultraconservadores que defendem apenas interesses do grande capital financeiro.

Parece-nos não haver dúvidas de que, até o momento, não foram constatados efeitos favoráveis ou expressivos dessas reformas na economia e na vida da população em geral. Ao contrário, parece-nos que os modos de circulação e de distribuição da riqueza, de acesso à educação e de distribuição territorial estão mais desiguais do que nunca. Parece-nos que a falência, a exclusão social e produtiva, a miséria e a fome só vêm crescendo[12].

Por esses e tantos outros motivos, não há dúvidas de que nosso país precisa, de fato, passar por reformas, mas estas devem ser refundadas em princípios republicanos e democráticos. No que tange à Educação, devemos reafirmar a defesa da gestão pública e da escola pública de qualidade, laica e gratuita em todos os níveis e modalidades de ensino, como direito de todos e de todas.

Ao assumir os pressupostos de Thompson (2011), reconheço que as formas simbólicas interpretadas por mim também são já interpretadas, de algum modo, por outras pessoas que compõem o mundo social. Assim, espero que esse intercâmbio possa servir para estimular novas reflexões entre nós, transformando-nos e auxiliando o avanço do direito à educação e a uma sociedade mais justa e igualitária.

Enfim, essa é minha reinterpretação da realidade, mas sei que existem pontos de vista para além da minha perspectiva. Qual seria, então, o seu?

Referências

BORGES, R. C. Concepções de diretoras de Centros de Educação Infantil paulistanos sobre creche, educação e cuidado de crianças pequenas de até 3 anos. 2015. 268 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm>. Acesso em: 13 nov. 2021.

______. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm>. Acesso em: 13 nov. 2021. (2017a)

______. Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017. Institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular, a ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/historico/RESOLUCAOCNE_CP222DEDEZEMBRODE2017.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2021. (2017b)

______. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm>. Acesso em: 13 nov. 2021. (2019a)

______. Projeto de Lei nº 2.401/2019. Dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar, altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Projetos/PL/2019/msg121-abril2019.htm>. Acesso em: 13 nov. 2021. (2019b)

______. Projeto de Lei nº 5.595/2020. Reconhece a educação básica e a educação superior, em formato presencial, como serviços e atividades essenciais e estabelece diretrizes para o retorno seguro às aulas presenciais. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148171>. Acesso em: 15 nov. 2021. (2020a)

______. Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020. Altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1928147&filename=PEC+32/2020>. Acesso em: 13 nov. 2021. (2020b)

THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social e crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

 

[1] Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2015). Graduada em Pedagogia (2004) e em Psicologia (1991). Especializada em Psicopedagogia (1995). Atualmente, é diretora de escola (afastada) na Rede Municipal de Ensino de São Paulo e dirigente do Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público Municipal de São Paulo (Sinesp). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[2] Em alguns parágrafos específicos, usarei a primeira pessoa do singular para localizar-me no processo, porém, no decorrer do texto, usarei também a primeira pessoa do plural, por acreditar que o conhecimento social é uma construção coletiva que envolve os estudos de outros atores sociais.

[3] O trecho deste artigo destinado a apresentar a teoria de Thompson (2011) foi inspirado na dissertação de mestrado intitulada “Concepções de diretoras de Centros de Educação Infantil paulistanos sobre creche, educação e cuidado de crianças pequenas de até 3 anos”, de autoria de Rosana Capputi Borges (2015).

[4] Napoleão Bonaparte (1769-1821) foi militar, líder político e imperador da França.

[5] “What is to be done? Burning questions of our movement”.

[6] “History and class consciousness studies in marxist dialectics”.

[7] Thompson (2011) identifica na obra de Mannheim (1936), “Ideologia e utopia”, duas concepções de ideologia: (1) a concepção total é neutra, pode ser “tomada como sistemas interligados de pensamento e modos de experiência que estão condicionados por circunstâncias sociais partilhadas por grupos de pessoas, incluindo as pessoas engajadas na análise ideológica” (THOMPSON, 2011, p. 67) e (2) a concepção restrita é crítica e refere-se a representações e ideias que são utilizadas por adversários como disfarces, mentiras e enganos, mais ou menos conscientes, sintetizada como “ideias discordantes da realidade e não concretizáveis na prática” (Ibid. p. 69).

[8] Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão, ativista político e um dos fundadores do socialismo científico e da Sociologia. Pensador que influenciou a Sociologia, a Economia, a História e a até a Pedagogia no século XIX, cujas ideias continuam a ressoar nos dias atuais.

[9] Segundo Thompson (2011), Marx, ao analisar os acontecimentos de 1848-1851 que levaram ao golpe, retratou que esses acontecimentos não foram resultantes apenas das condições econômicas, isto é, do desenvolvimento das forças e das relações de produção durante a monarquia burguesa de Luis Felipe, mas, antes, foram acontecimentos ligados a imagens do passado, presos a tradições que persistiam, apesar da mudança contínua das condições materiais de vida. “Se Marx subestimou o significado da dimensão simbólica da vida social, ele, contudo, entreviu suas consequências” (THOMPSON, 2011, p. 61).

[10] “The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte”.

[11] O estadunidense Geertz (1926-2006) foi considerado um dos principais antropólogos do século XX.

[12] Para mais informações, consultar:

<http://olheparaafome.com.br/>

<https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/especial1deMaio.pdf>

<https://sintufrj.org.br/2021/04/pobreza-e-extrema-pobreza-atingem-611-milhoes-de-brasileiros-em-2021/>. Acessos em: 30 jun. 2021.

 


Clique aqui para baixar em PDF

0
0
0
s2sdefault

Revista Pedagógica - Download >>> Clique para baixar

Revista Rede Autora 2021 sinesp capa site

Ficha - clique para ampliar

Revista Rede Autora 2021 sinesp capa site

Vídeo: SINESP Recebe Rede Autora 2021

REDE AUTORA - SUMÁRIO