Para a socióloga, é preciso fugir da falsa dicotomia entre a melhoria da gestão e a necessidade de ampliar o investimento, "ambas necessárias"

Por Maria Alice Setubal* — publicado no site Carta Capital em 23/12/2016

Retrocessos

Ao longo da nossa história, o Brasil cometeu um erro grave: não ter como prioridade a construção de um país que garanta o direito à educação a todos. Esta decisão trouxe, e ainda traz, graves consequências. Ela limita o desenvolvimento econômico e impacta a qualidade de vida da população, seja na sua atuação cidadã, seja na sua inserção no mercado de trabalho. Mais do que isso: contribui para a manutenção das desigualdades sociais que historicamente afligem, sobretudo, os mais pobres.

A comparação da evolução da escolaridade média do brasileiro com a de outros países demonstra o nosso atraso em ter uma política sólida para a área. Nos anos 1970, mais da metade da população dos EUA já tinha concluído o Ensino Médio e 20% o Ensino Superior, enquanto no Brasil tínhamos menos de 2% e 1%, respectivamente. De 1950 a 2010, a Coreia quase triplicou a escolaridade média da população, passando de pouco mais de 4 anos para 12 anos de estudo. Vale lembrar que o Chile, nosso vizinho, possuía uma média de anos de estudo de 7,3 em 1985. Patamar alcançado pelo Brasil somente em 2011.

Somente após a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, o Brasil começou a dar os primeiros passos rumo à universalização do acesso ao Ensino Fundamental. Nos anos 1990, com o Fundef, ampliamos o acesso ao Ensino Fundamental. Na década seguinte, com Fundeb e a Emenda Constitucional 59/09, incluímos mais crianças na educação infantil e jovens no Ensino Médio e mais estudantes das camadas populares chegaram à universidade. A aprovação do Plano Nacional de Educação, após ampla discussão e participação de diferentes setores da sociedade, foi outra conquista e suas metas devem orientar as políticas educacionais até 2024.

Em que pese estas conquistas, ainda há muito a melhorar. O Brasil precisa incluir 2,5 milhões de crianças na creche, 600 mil na pré-escola, cerca de 460 mil no Ensino Fundamental e 1,7 milhão de jovens de 15 a 17 anos no Ensino Médio.

Nas escolas públicas rurais, quatro em cada dez estudantes têm dois anos ou mais de atraso em relação à série que estudam. Nas urbanas, essa razão é de três em cada dez, segundo o Censo Escolar 2015.

Dados da Prova Brasil de 2013, analisados pelo Cenpec, revelam que 31,4% dos estudantes mais ricos têm proficiência adequada em leitura. Entre os mais pobres, apenas 13,8%. A desigualdade racial também é grande: 32,28% alunos brancos tem conhecimento adequado em leitura, enquanto os negros 18,34%.

O diploma universitário ainda é para poucos. Enquanto 37,3% do quintil mais rico da população têm Ensino Superior completo, esse percentual é de apenas 1,3% entre os mais pobres, segundo a última Pnad/IBGE.

Quando defendemos que todos, sem exceção, têm direito à uma educação de qualidade, significa que ninguém pode ficar para trás. Por isso, cada vez mais precisamos de políticas públicas focalizadas, conectadas às realidades e às necessidades de cada território, que enfrentem as diferentes formas de desigualdade, sejam elas regionais, por raça, por renda ou de gênero.

É preciso lembrar que o sistema público de ensino atende cerca de 81% das matrículas da Educação Básica e envolve mais de um milhão e meio de docentes.  São essas redes de ensino que carecem de políticas de valorização docente, que inclui salários adequados, planos de carreira e forte investimento na formação inicial e continuada dos professores, fator fundamental para a melhoria da aprendizagem dos alunos.

Em meio à uma crise econômica, política e institucional, o país não pode permitir retrocessos. A sucessiva descontinuidade das políticas educacionais tem um impacto perverso. E o mesmo ocorre com propostas que são implementadas sem amplo debate e adesão dos educadores e dos diferentes setores da sociedade, como a proposta de reforma do Ensino Médio feita por meio de medida provisória.

As políticas públicas precisam ser bem desenhadas, construídas a partir de consensos possíveis, com a adesão da sociedade e a partir de análises sérias sobre seus potenciais e riscos para não resultar em maior iniquidade.  

Também é preciso fugir da falsa dicotomia entre a melhoria da gestão e a necessidade de ampliação do investimento em educação.  Ambas são necessárias, bem como o aperfeiçoarmos dos mecanismos de controle social.

Com a aprovação da PEC 55, que congela por 20 anos os gastos públicos federais nas áreas sociais, a efetivação plena do direito à educação para todos continuará no campo das previsões de um futuro distante para o Brasil.

* Socióloga, presidente do Conselho de Administração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação (Cenpec) e da Fundação Tide Setubal.

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