O Portal do SINESP publica texto que aborda a situação política atual do país, os ataques à democracia e os perigos que isso representa para todos, explana sobre o conceito de democracia e as características do regime e do governo. A autoria é de Rudá Ricci, Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP) e Presidente do Instituto Cultiva, que assessora o SINESP na construção do Retrato da Rede.

 

SOBRE A DEMOCRACIA E SEUS LIMITES

Rudá Ricci

O Brasil vive uma encruzilhada. Pela via democrática elegeu um governo de extrema-direita que ameaça, mas ainda não alterou a lógica democrática em nosso país, até o momento. Diversas personalidades de destaque nas instituições centrais de nossa democracia já manifestaram sua preocupação com os riscos que estamos vivendo. Este é o caso de Celso de Mello, ministro do STF, que explicitou sua apreensão. Em mensagem enviada aos seus colegas da Alta Corte, alertou:

“É preciso resistir à destruição da ordem democrática, para evitar o que ocorreu na República de Weimar, quando Hitler não hesitou em romper e nulificar a progressista, democrática e inovadora Constituição de Weimar. Guardadas as devidas proporções, o ´ovo da serpente`, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (1919-1933), parece estar prestes a eclodir NO BRASIL! ”

A preocupação do ministro decano pode ter parecido exagerada para alguns brasileiros, o que suscita um aprofundamento sobre os limites da democracia.

 

Comecemos com o conceito de democracia.

Democracia é um regime político em que todos os cidadãos, indistintamente, são iguais perante a lei e escolhem seus representantes que, profissionalizados, possam se dedicar a fazer leis que acolham os interesses de todos ou, no limite, da maioria dos representados, e dirijam a máquina do Estado, em seus níveis de jurisdição. Aqui, temos uma distinção importante: Estado de Governos e Parlamentos.

Estado é a máquina pública que, no mundo moderno, existe para garantir a paz e o equilíbrio nas relações sociais. Administra a coisa pública e é composto por equipamentos, instituições e servidores de carreira. Seu fundamento é a busca da justiça social e a garantia da preservação dos direitos dos cidadãos. Já governos são constituídos por forças políticas organizadas que, eleitas, dirigem a máquina do Estado por um período determinado. Legislativo são compostos por representantes eleitos que produzem leis, incluindo a lei que autoriza o gasto pelos governantes, o orçamento público. Finalmente, o judiciário forma o terceiro vértice das instituições basilares da democracia moderna: julgam a todos, preservando as regras que democraticamente foram elaboradas pelos legislativos.

Estado não é governo, portanto. Há governantes que procuram confundir essas duas dimensões da vida pública. Quando o fazem, caminham para algo distinto da democracia porque procuram destruir a independência dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – que são independentes para criar um sistema de contrapesos, como pensou Montesquieu. Se um poder faz leis, executa e julga, estaríamos perante a uma ditadura, dado que quem pensa de maneira distinta desse poder absoluto, estaria fora da lei.

Já temos, então, uma primeira pista para entendermos um pouco das preocupações do ministro Celso de Mello. O atual governo federal estimula ações intimidatórias contra o parlamento federal (Congresso Nacional) e o judiciário (STF). O Presidente da República sustenta que esses atos são democráticos porque são expressão de cidadãos. Chegaremos, mais adiante, a essa noção que confunde liberdade total com democracia.

Ocorre que a democracia não é apenas maioria. Não se trata de número. Trata-se de poder do cidadão. Caso contrário, o eleito ao tomar posse, poderia se desvencilhar do desejo de quem o elegeu. Estaríamos, nesse caso, distantes da noção de representação, dada a autonomia de decisão do eleito. Então, aqui, ingressamos numa camada mais complexa do jogo democrático.

 

Na concepção moderna de democracia, temos ao menos duas modalidades de processos decisórios: o representativo e o direto.

Na democracia representativa, a vontade do cidadão é exercida por um representante eleito. São dois tipos de representações: a delegada e a fiduciária. A delegada é quando um representante está vinculado estritamente a um agrupamento ou interesse corporativo. É o caso do “deputado dos professores” ou da “bancada da bala” ou “vereador do bairro X”. O eleito se restringe a uma pauta com interesses muito específicos.

Já a representação fiduciária é aquela em que votamos em confiança, a partir de um discurso geral que o candidato faz e que nos agrada. Contudo, não sabemos exatamente o que ele fará em meu bairro ou para minha categoria profissional. É o caso da eleição de um governador que não tem como prometer o que fará em cada bairro de cada cidade de seu Estado. Mas, seu discurso geral pode convencer grande parte dos eleitores e gerar a confiança de que fará um governo para atender aos interesses dos moradores do meu bairro, por exemplo.

Já a democracia direta é aquela em que não há representante. Os cidadãos, em assembleia ou plenária, decidem sobre a agenda pública a ser adotada.

As duas formas de representação são legítimas, porque são decididas pelos cidadãos num processo claramente democrático. Ocorre que elas carregam riscos. A democracia representativa delegada coíbe que os representantes pensem além dos interesses de seu grupo corporativo, aquele que o sustenta politicamente. Nesse caso, além de nenhum assunto de agenda universal ter condições de se efetivar, a democracia representativa delegada pode estimular uma disputa sem fim entre interesses comunitários e particulares. É de se refletir como se elaboraria um orçamento público se cada representante só pensar nos eleitores de sua base territorial eleitoral.

Já a democracia representativa fiduciária pode se desviar para a autonomia absoluta do governante. Resumidamente, se o eleito pode fazer o que desejar dado que foi eleito em confiança, sem ter dito em detalhes o que faria, estaria autorizado a não prestar contas de seus atos. Assim, o vínculo de representação poderia se quebrar e estaríamos próximos de uma tirania ou plutocracia (o governo das elites).

Finalmente, a democracia direta só leva em consideração aqueles que estiveram presentes na assembleia, eliminando todos os outros cidadãos que, por um motivo ou outro, não puderam chegar na plenária. Nesse caso, a decisão seria parcial, não de todos.

Como se percebe, a engenharia democrática não é simples e não se trata apenas de eleição ou votação, mas de garantir que todos os cidadãos tomem lugar nos processos de decisão pública. Norberto Bobbio, autor do renomado Dicionário de Política, sugeria que as três modalidades – representação delegada, representação fiduciária e democracia direta – deveriam existir concomitantemente porque uma teria o antídoto para os vícios das outras.

Ao sugerir que apenas um dos mecanismos democráticos se imponha sobre os outros, o governo federal atual procura desequilibrar esse balanço entre as várias formas de tomada de decisão democrática.

 

Então, vivemos uma encruzilhada.

Vivemos uma democracia. Afinal, temos eleições livres em que todos cidadãos podem votar, temos imprensa livre, temos a possibilidade de pluralidade organizativa (em associações, partidos e outras formas de associação civil), temos instituições funcionando e o equilíbrio entre poderes. Não é possível afirmar que não vivemos em uma democracia. Lembremos que os mecanismos democráticos não são perfeitos e carregam riscos.

Contudo, temos um governo que emite ameaças à democracia, estimula manifestações contra as instituições democráticas, apela ao uso da força para impor suas opiniões, não segue as orientações técnicas baseados na ciência e em acordos internacionais e procura criar um clima de excitação constante na sociedade, estimulando conflitos.

Mais que isso: o atual governante do Executivo Federal decidiu incluir militares em postos centrais da administração pública. São mais de 2.000 cargos comissionados ocupados por militares no governo federal. Algo inusitado em qualquer democracia contemporânea. São mais ministros militares, proporcionalmente, que no governo venezuelano, definido como autoritário por essa característica.

Um dos problemas centrais da escalada autoritária do governo federal é não perceber a distinção entre Estado, Governo e Nação. Os discursos proferidos pelo Presidente da República e vários de seus ministros embaralham essas dimensões institucionais. Já fizemos a distinção entre Estado e Governo. Um governante não se impõe sobre o Estado, ele apenas o governa. Se desejar alterar a lógica do Estado, precisará encaminhar sua sugestão ao legislativo. É lá que se decide sobre as leis que conformam o Estado. E a Nação? Nação é a cultura, a alma, os valores construídos na sociedade e que geram uma identidade entre os cidadãos de um determinado território. Tais valores são construídos historicamente em um processo de tolerância e diálogo entre os cidadãos que conforma a sociedade civil. Portanto, a noção de nação não nasce no Estado, mas na sociedade civil, de onde emana a “energia moral” de uma nação.

Pois bem, o Presidente da República confunde tais dimensões. Sugere que sua opinião, devido à sua eleição, tem que ser a opinião da nação. E deve ser imposta a todos outros poderes. E estimula mobilizações de ataque às opiniões contrárias e aos outros poderes para inibir, coibir e enquadrar as opiniões distintas a partir da sua.

 

Temos, então, uma primeira caraterização do atual governo.

Trata-se de um governo militarizado que adota um discurso que inibe as distinções entre poderes (e a estrutura plural do Estado democrático) e confunde as intenções de seu governo com os desejos da Nação.

Faltaria, então, uma última precisão teórica: a distinção entre autoritarismo e totalitarismo, distintos da lógica democrática. Com essa distinção é possível precisar melhor a caracterização do atual governo federal e, assim, dialogar com a preocupação do ministro Celso de Mello.

Autoritarismo é o regime em que se tutela a disputa de interesses, a disputa política. Não há plena liberdade de organização. Foi assim durante o regime militar, onde apenas dois partidos eram legalizados e tolerados pelo governo federal: ARENA e MDB. Os regimes autoritários possuem uma segunda característica nítida: desmobilizam a sociedade, impedindo-a de realizar assembleias, reuniões amplas, aglomerações, manifestações ou protestos. Todo governo autoritário é altamente centralizador e, por esse motivo, não admite divergências profundas. Quando, no regime militar, o MDB passou a vencer muitas eleições (a partir de 1974), o governo federal decidiu impor uma mudança na composição do Senado, conhecido como Pacote de Abril, criando a figura de um terceiro senador por Estado, conhecido como “senador biônico”, para desequilibrar a composição nessa casa parlamentar. Enfim, o desejo popular foi desconsiderado, a despeito do formalismo das eleições se manter.

Já um regime totalitário não admite nenhuma oposição, seja tutelado ou não, extinguindo e perseguindo todos divergentes à opinião central, confundindo seus interesses e desejos com o da Nação. Em suma, o governo central representaria os desejos de todos cidadãos, seus interesses seriam os de todo o país e qualquer divergência deve ser considerada antipatriótica. Por aí, há outra característica de todo regime totalitário: a mobilização permanente da sociedade. Os governantes totalitários estimulam que todos estejam nas ruas, gritando, ameaçando, num grau de excitação permanente para ameaçar qualquer oposição. Afinal, qualquer divergência colocaria, em sua opinião, a Nação em risco.

 

Chegamos, então, a uma formulação mais precisa sobre o governo de Jair Bolsonaro.

Trata-se de um governo militarizado, cuja lógica de tomada de decisão e programas assumem um nítido viés autoritário (sem debate nacional ou respeito à independência dos poderes instituídos) e com forte pendor totalitário (mobilização constante dos agrupamentos sociais que o apoia e discurso em que identifica as divergências com sua agenda com ameaça à Nação).

Ora, as mobilizações que agridem as instituições democráticas e a divergência política, as mobilizações que exigem o fechamento ou enquadramento do STF e do Congresso Nacional, aos desejos do governo central, são nitidamente antidemocráticas. Mais que isso: destilam valores totalitários. Não por outro motivo, lideranças dessas mobilizações – como o grupo 300, que montou acampamento em Brasília – utilizam armas e adotam símbolos e práticas nazistas e da Ku Klux Klan. Na medida em que o Presidente da República apoia e se faz presente nessas manifestações de caráter totalitário, ofende a lei federal e se alinha com os valores antidemocrático.

A situação ficou mais grave quando o general da reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência da República, publicou nota no dia 22 de maio em que atacava uma notícia-crime encaminhada ao procurador-Geral da República formulada pelo PDT, PSB e PV, afirmando que o pedido de apreensão do celular do presidente Jair Bolsonaro pode “ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. A ameaça foi visivelmente endereçada à decisão do STF que, por lei, deveria encaminhar – como o fez – o pedido para a Procuradoria Geral da União (que indeferiu o pedido). Um ministro procurou interceder sobre uma decisão de poderes independentes ao Executivo.

Esta sinalização se somou aos arroubos autoritários de ministros revelados num vídeo de reunião ministerial ocorrida em 22 de abril deste ano. O ministro da Educação, sustentou ness reunião: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF. E é isso que me choca”.

Como se percebe, os contornos do atual governo federal são ofensivos ao regime democrático. Relativiza as regras definidas por outros poderes, ameaça instituições, mobiliza setores minoritários da sociedade que destilam discursos e práticas beligerantes, procura deliberadamente intervir em instituições democráticas para impor seu programa e interesse, confunde governo com desejo nacional (quando não extrapola para o uso do cargo de Presidente para defender interesses de sua família).

Os que seguem as opiniões do governo central são poucos, entre 30% e 25%, segundo as últimas enquetes realizadas no Brasil: 70% são contra que os brasileiros se armem (DATAFOLHA); 70% dos brasileiros não querem voltar ao trabalho nas próximas semanas (IPSOS), 70% da população brasileira qualifica como ruim ou regular o atual governo (CNT).

Vivemos um impasse democrático no Brasil. Impasse que motivou a mensagem dramática do ministro Celso de Mello. Esse é o fundamento de sua preocupação: o Estado de Direito está ameaçado pelo governo federal.

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