O Professor Fábio Hoffmann Pereira, da Universidade Federal de Alagoas, fala a partir de sua formação na área de estudos da Educação Infantil e da sua experiência como professor, coordenador pedagógico e diretor de escola em instituições públicas de educação, de 1999 a 2019, período em que foi RELT e CREP do SINESP.

Fabio1Em entrevista ao Portal do SINESP, ele levanta características da educação infantil e, com base nelas e também pelas dificuldades de disponibilidade de grande parte da população brasileira a internet, argumenta e se posiciona sobre o uso de ferramentas digitais para a Educação de bebês e crianças pequenas.

Para Fábio, o material impresso (que está em processo de entrega desde 13 de abril para os endereços das famílias) para a primeira infância e seu complemento digital parece um guia de como as famílias podem substituir as professoras e os professores enquanto perdurar o que o material chama de “distanciamento social”.

Ele questiona a ação da instituição educativa que, em vez de ampliar sua função de assessora das famílias neste momento, se coloca como “enviadora de tarefas”. Lembra que cada família tem sua dinâmica própria e que oferecer o modelo escolar de rotina pode trazer muitas dificuldades.

Para ele, o material da SME incentiva e possibilita o aprofundamento das desigualdades sociais, uma vez que as crianças com condições de ter internet disponível para suas famílias poderão se desenvolver enquanto as demais, geralmente as mais pobres, ficarão para trás, com uma diferença cada vez maior.

Acompanhe a entrevista e acesse AQUI o material da prefeitura enviado para as famílias.

 

SINESP: Com a pandemia, foi proposto pela Prefeitura de São Paulo o envio de materiais impressos e uso de plataformas virtuais como a Google Sala de Aula para todas os agrupamentos e anos escolares da Rede darem continuidade às atividades, inclusive com os bebês e crianças, para “manutenção do processo de aprendizagem”, como diz a SME em sua normativa de retomada das atividades.

Considerando as linguagens da Educação Infantil, qual sua avaliação em relação ao material impresso (que ainda está em processo de entrega desde 13 de abril para os endereços das famílias) para a primeira infância?

Fábio Hoffmann: O próprio material enfatiza a importância de que as interações e a brincadeira são os eixos sobre os quais a educação dos bebês e das crianças pequenas deve estar fundamentada.

No geral, o material parece um guia de como as famílias podem substituir as professoras e os professores enquanto perdurar o que o material chama de “distanciamento social”.

O caderno “Trilhas de aprendizagens: brincadeiras e interações para crianças de 0 a 3 anos” resume uma rotina característica de uma creche. Sugere, nesta ordem um momento de conversa para acolher a criança, um momento de alimentação e, em seguida, de vivenciar experiências de leitura.

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Um aspecto que eu apontaria como positivo é que as orientações sobre aprendizagem das crianças são tratadas na forma de sugestões de atividades lúdicas e de brincadeiras.

O caderno não propõe a realização de “tarefinhas”, como aquelas que eu venho recebendo de professoras e mães. Falo no feminino, porque tenho recebido denúncias e pedidos de orientação de pessoas do sexo feminimo apenas.

Muitas instituições de educação infantil têm complementado as orientações de suas redes de ensino, não apenas da Prefeitura de São Paulo, com o envio de tarefas para as crianças preencherem, pintarem desenhos prontos, contornarem linhas e traçados, ou seja, têm sugerido atividades (se é que se pode chamar tais ferramentas que exigem que as crianças fiquem sentadas e mantenha concentração focada para executarem de atividades) que antecipam técnicas que geralmente são trabalhadas no ensino fundamental.

É preciso que as educadoras e educadores tenham clareza dos objetivos do seu trabalho com bebês e crianças pequenas. Eu tenho sugerido que a instituição educativa amplie a sua função de assessora das famílias neste momento e não que sejam “enviadoras de tarefas”.

Se a finalidade da Educação Infantil é que a instituição complemente a educação da família, é no CEI e na EMEI que as famílias deveriam ter uma referência para quando tiverem dúvidas. Mas o que venho observando é que a Cidade de São Paulo escolheu a estratégia de transformar suas unidades de Educação Infantil em produtoras de “tarefinhas”.

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Fabio continua e aborda que cada família tem sua dinâmica própria, oferecer o modelo escolar de rotina pode trazer muitas dificuldades.

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Uma delas é a de adaptação. Como eu vou fazer para fazer com a minha criança isso que a escola orienta, que é ter uma rotina dia após dia, de manhã, à tarde e, também, à noite para educar a minha criança?

Uma segunda dificuldade, que pode decorrer da primeira é o abandono dessa proposta pelas famílias. Já que eu não consigo fazer, deixa esse material pra lá, não serve para mim e a minha criança.

Por falar em diversidade. Em vários momentos, o caderno traz a indicação “Se você tem acesso à internet,...” que parece abraçar a diversidade de famílias. Tudo bem se você não tem internet disponível, parece dizer a Secretaria.

Como fica a inclusão social desta família? E a inclusão social da criança no contexto da Educação oferecida pela Secretaria Municipal de Educação? Quem tem acesso à internet se beneficia do material, quem não tem, que possibilidades pode aventar?

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É um material que, vergonhosamente, incentiva e possibilita o aprofundamento das desigualdades sociais. As crianças com condições de ter internet disponível para suas famílias poderão se desenvolver enquanto as demais, geralmente as mais pobres, ficarão para trás, com uma diferença cada vez maior.

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Fábio se questiona se os pais e mães que compreenderão o material entregue pela Secretaria não seriam os mesmos que já estão familiarizados com pesquisas na internet e que já vêm buscando estratégias de entretenimento de qualidade para o desenvolvimento de seus filhos e filhas.

Por fim, quando falamos em desenvolvimento das crianças, o material sugere nas atividades, mas não destaca a importância de que as atividades lúdicas devem ser diversificadas para garantirem o desenvolvimento integral da criança nos quatro aspectos previstos pela nossa lei de diretrizes e bases da educação nacional, que são o desenvolvimento físico, o desenvolvimento intelectual, o desenvolvimento psicológico e o desenvolvimento social.

 

SINESP: O uso de plataformas virtuais, segundo o próprio Secretário, se dá em caráter complementar, mas muitos profissionais de educação não têm acesso a esta plataforma.

A partir das concepções da Educação Infantil e de sua vivência, o que acha do uso de Plataformas na Primeira Infância?

Fábio Hoffmann: Essa discussão sobre o acesso já está amplamente em debate nas últimas semanas. É objeto, inclusive de ações no Ministério Público (veja matéria AQUI).

 

SINESP: Mas o Sr. considera viável o uso de plataformas, sobretudo quando muitas famílias não tem acesso a meios tecnológicos?

Fábio Hoffmann: Não existe na legislação brasileira nenhuma previsão de formas pelas quais a Educação Infantil seja oferecida na modalidade a distância.

Isso porque a própria expressão “Educação Infantil” pressupõe uma visão e uma organização completamente diferente do “Ensino Fundamental”, do “Ensino Médio” e também do “Ensino Superior”.

Porque a Educação Infantil é o único nível de ensino que tem “Educação” no nome, enquanto os demais níveis se chamam “Ensino...”? Exatamente pelo caráter de formação humana implícito na ideia de que a Educação Infantil não envolve apenas o ensino, ou seja, a transmissão de conhecimento, característica dos demais níveis de Educação.

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Na análise de Fábio:

O ensino fundamental e o médio, por exemplo, caracterizam-se pela transmissão de conhecimentos que as crianças e adolescentes usarão como ferramentas para o desenvolvimento de competências, para falar o linguajar da Base Nacional Comum Curricular (a BNCC).

São níveis de Educação que privilegiam o aspecto cognitivo e intelectual sobre todos os outros aspectos do desenvolvimento humano. A Educação Infantil, ao contrário, pressupõe o desenvolvimento integral da criança, sendo o intelectual um deles.

Os bebês e as crianças pequenas precisam aprender a cuidar do seu corpo, a se conhecer e saber quem são, aprendem que são diferentes das outras pessoas, descobrem o mundo à sua volta, fazem amigos, brincam. Isso desenvolve sua linguagem, sua força física, sua coordenação motora.

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A Educação Infantil é a etapa em que o cuidado está mais presente e é indissociável dos processos educativos.

Seu currículo é estruturado a partir das interações da criança com outras crianças, com adultos e com espaços especialmente planejados por profissionais para possibilitar que elas vivenciem experiências de aprendizagem. Não existe forma como a Educação Infantil se concretize a distância com padrão de qualidade, por mínimo que seja.

Também a Educação a Distância tem seus princípios e metodologias próprias.

Ela é pensada desde a concepção de curso, a definição do seu público-alvo, as estratégias e as formas de interação dos educandos com educadores (sejam professores, tutores, monitores, mediadores...).

Não existe princípio de Educação a Distância que se aproxime de bebês e crianças pequenas de forma que garanta a indissociabilidade entre cuidar e educar, que tenha como finalidade o desenvolvimento integral e que se estruture em torno de interações e brincadeiras.

A interação que as crianças têm, em nossa cultura, com objetos de tecnologias digitais é a interação lúdica. As crianças não utilizam celulares, tablets, computadores e outros meios para estudar ou trabalhar, mas como uma ferramenta para brincar em jogos eletrônicos, assistir vídeos, entre outras coisas. Fazer com que as crianças de uma hora para outra se relacionem com estes objetos digitais para finalidade de trabalhar concentradamente em tarefas, mesmo que seja para assistir filmes infantis nos questiona até que ponto estamos mesmo levando em conta os reais interesses das crianças.

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Pelo exposto acima e também pelas dificuldades de disponibilidade de grande parte da população brasileira a internet, me posiciono terminantemente contrário ao uso de ferramentas digitais para a Educação de bebês e crianças pequenas.

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Há uma diferença grande entre acesso e disponibilidade de internet. Muitas famílias possuem um pacote de dados nos seu plano de telefonia móvel. Isso caracteriza a família como “com acesso à internet”. Mas o plano é limitado. A internet é lenta. Não é em qualquer lugar que a família tem acesso a redes wi-fi. Isso faz com que a internet nem sempre esteja disponível.

Da mesma forma, uma família pode possuir um computador (ou notebook), por exemplo. Mas os membros precisam se revezar no seu uso, logo a ferramenta não está disponível sempre que uma criança que estuda precisa. Se for uma família numerosa, o problema se agrava ainda mais.

Veja a diferença que é para uma criança ter disponibilidade de internet sempre que precisa ou queira e a outra que não tenha essa disponibilidade, que precisa esperar para utilizar o celular da mãe, quando retornar do trabalho por exemplo.

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Usar plataformas digitais para a Educação, seja ela Infantil, Fundamental ou até no Ensino Superior, é permitir que aqueles com melhores condições econômicas possam se sobressair ainda mais, aumentando a desigualdade não apenas educacional, mas social em nosso país.

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SINESP: Quais alternativas para a primeira infância, em tempos de pandemia, considerando o já longo tempo de distanciamento entre famílias, crianças e Escolas?

Fábio Hoffmann: Eu penso que as estratégias de divulgação em redes sociais das unidades de educação infantil estejam sendo boas estratégias.

Mesmo com o distanciamento e as dificuldades de disponibilidade de internet, publicar fotos das crianças, desde que tenham sido prévia e expressamente autorizadas, e recados com recomendações pode ser uma forma de aproximar o CEI, CEMEI ou EMEI das famílias e de suas crianças.

É importante que as instituições mantenham relações com as unidades de saúde e que as equipes escolares conheçam as estatísticas da sua região e também as tornem públicas de vez em quando para as famílias das crianças que atendem.

Não posso generalizar, mas tenho conhecimento de algumas instituições serem o ponto de apoio de algumas famílias.

Sabemos que no dia a dia, muitas mães e pais (até mesmo outros familiares) vão buscar informações sobre acesso a direitos sociais na escola. É pela instituição escolar que muitas vezes o Estado se faz presente nas vidas das pessoas.

Em minha experiência como diretor de escola, era muito frequente que atendêssemos pessoas perguntando sobre como ter acesso ao atendimento psicossocial, aos programas de assistência social, aos centros de atendimento ao trabalhador e até a melhores trajetos de transporte público.

Isso mostra o quanto a instituição escolar é importante nas vidas não apenas das crianças, mas também das famílias, pois não sabendo a quem perguntar, é na instituição de educação que vêm uma porta de acesso e entrada a direitos e serviços públicos.

Assim, eu vejo as instituições, sobretudo de educação infantil, como assessoras das famílias em suas dúvidas neste período de emergência que nos obriga a estarmos isolados socialmente. Isolados, cada um na sua casa, mas não distantes em nossas relações humanas.

FabioHof

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