Sobre a “aprovação automática”: projeto de lei que busca acabar com os ciclos na educação básica ignora evidências de que o sistema não prejudica os alunos.

Fonte: Antônio Goes, em O Globo e, 09/10/2017

Tramita no Senado, ainda em estágio inicial, um projeto de lei que busca “extinguir a progressão continuada na educação básica”. Em entrevista à Rádio Senado, o autor do projeto, senador Wilder Morais (PP-GO), argumenta que em “21 anos desde que o sistema foi adotado, a gente percebe que não houve evolução positiva”, e que, “pelo contrário, hoje vários alunos não têm condições de escrever contas básicas”.

O senador ainda prossegue dizendo na entrevista que naquela época (antes dos ciclos) “a gente tinha muito mais qualidade no ensino do que a gente tem hoje”. (veja a entrevista aqui)

É impressionante como um legislador, ao falar rapidamente em uma entrevista de um tema tão importante, é capaz de cometer tantos equívocos. A começar pelo mito de que, antes dos ciclos, a qualidade do ensino era melhor.

A progressão continuada, chamada de “aprovação automática” pelos seus críticos, passou a vigorar na lei como uma opção dos sistemas de ensino a partir de 1996. Nunca foi obrigatória, nem majoritária.

Mas em 1995, um ano antes de aparecer como opção na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, registrava que 28% das crianças de oito anos de idade eram analfabetas. Em 2015, esse percentual havia caído para 10%. 

Outra base de dados a contradizer o senador é a do Inep (instituto de estudos e avaliações vinculado ao MEC). Dados do instituto tabulados pelo movimento Todos Pela Educação mostram que, em 1995, portanto um ano antes da LDB e da expansão dos ciclos, somente 19% dos alunos terminavam o quinto ano com aprendizado adequado em matemática. Em 2015, esse percentual era de 43%. 

metas desempenho 

Esses dados não provam que o sistema de ciclos melhorou a qualidade do ensino. Para isso, é necessário fazer pesquisas mais rigorosas. E a boa notícia é que elas já existem.

Em 2007, Ocimar Alavarse (USP) comparou na Prova Brasil (avaliação oficial do MEC) o desempenho de alunos em redes que adotavam ciclos com os demais e concluiu que a política “não levou a desempenhos inferiores”. No mesmo ano, Sergei Soares (Ipea) também concluiu ao analisar dados internacionais que as políticas de progressão continuada não exercem qualquer impacto negativo sobre o desempenho escolar dos alunos.” 

Em 2008, Naercio Menezes-Filho (Insper) e outros autores identificaram uma pequena queda no desempenho no 9o ano do ensino fundamental, mas que, na avaliação dos pesquisadores, era compensada pelos benefícios futuros de reduzir o número de jovens que abandonam a escola. Mais recentemente, em 2014, Reynaldo Fernandes (USP) e outros autores concluíram que “o fluxo educacional melhorou no ensino fundamental sem que se verificasse uma queda no desempenho dos estudantes pertencentes às gerações beneficiadas por essas políticas” de progressão continuada.

Os resultados desses estudos podem variar um pouco, mas em geral contam a mesma história: os ciclos são eficazes na redução da evasão escolar e não causaram queda na qualidade do ensino. Mas tampouco pode-se concluir, pelo conjunto de evidências desses trabalhos, que a política melhorou o desempenho dos alunos (apenas o trabalho de Fernandes e outros apontou algum impacto positivo). A progressão continuada, portanto, não resolve o problema da baixa qualidade do ensino (quem dera fosse tão simples) e há muitas críticas a serem feitas pela forma como foi implementada em várias redes.

Como em qualquer tema que desperta discussões acaloradas, é difícil para a maioria de nós aceitar argumentos, por mais fundamentados que sejam, que contrariem opiniões pré-concebidas. Enquanto isso afeta debates em mesas de bar ou mídias sociais, menos mal. O preocupante é quando formuladores de políticas públicas ignoram essas evidências na hora de propor soluções simplórias para um tema tão complexo quanto a melhoria da qualidade do ensino.

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