Em entrevista ao Portal do SINESP, o Coordenador Técnico do DIEESE Fausto Augusto Jr. denuncia que a PEC 32/2020, a proposta de reforma administrativa do governo, pretende fazer o Estado atuar somente onde o setor privado não puder ou não quiser explorar, invertendo o que determina a Constituição de 1988. Isso, e outros itens da proposta, escancara a porta para a privatização total dos serviços públicos e estatais.
A proposta também muda a forma de contratação por concurso e destrói as carreiras, projetando um retorno ao clientelismo que foi característica do Estado brasileiro até 88. Para ele, a dependência de econômica externa vai aumentar, na medida em que os setores em que a iniciativa privada não quiser atuar ficarem paralisados.
Esse desmonte dos serviços públicos vai significar a transferência para o mercado dos direitos sociais, com enorme prejuízo para a população em geral e acesso garantido somente àqueles que puderem comprar os serviços.
Ele lembra ainda que a PEC 32/2020 afeta os atuais servidores públicos com medidas como o enfraquecimento da estabilidade a partir ampliação da avaliação de desempenho.
Fausto é Coordenador-Técnico do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) da área de Educação e Comunicação, Mestre em Educação e Doutorando pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e graduado em Ciências Sociais pela USP.
A seguir, a entrevista:
● Em que aspectos essa PEC desmonta os Serviços Públicos?
A proposta de Reforma Administrativa estabelece como princípio da administração pública a subsidiaridade do serviço público à iniciativa privada.
Isso significa que caberá ao Estado atuar somente onde o setor privado não puder ou não quiser explorar. É uma inversão, no que se refere ao provimento dos direitos sociais do que foi estabelecido na Constituição de 1988.
Além disso, ao alterar as formas de contratação e acabar com a estabilidade dos servidores públicos, vamos assistir um retrocesso na constituição de um Estado com responsabilidade social com sua população, possivelmente retornando ao clientelismo que foi característica do Estado brasileiro até 1988.
Menos servidores ingressando no serviço público vinculados ao Regime Próprio inevitavelmente causará e/ou aumentará o déficit financeiro e atuarial.
O déficit repercutirá nos estados e municípios na contribuição previdenciária dos inativos, por meio de contribuição extraordinárias e/ou diminuição da base de contribuição isenta.
Além disso, com as novas formas de contratação irá se quebrar a referência da paridade.
● Em que aspectos ela favorece e induz à privatização desses serviços?
A PEC, além da introdução do princípio da subsidiaridade, inclui um novo artigo na CF que autoriza os entes a firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos. Este artigo constitucionaliza as diferentes formas de contratação que já precarizam os serviços públicos e deve levar a outros.
● Qual o impacto dessas mudanças para a economia do país?
Estamos em um momento econômico complicado, na qual a questão fiscal está sendo usada para avançar na desestruturação do Estado Brasileiro. As diferentes ferramentas construídas ao longo do século XX para o Estado impulsionar o desenvolvimento econômico e social estão sendo desmontadas e transferidas para a iniciativa privada.
Na prática, isto vai significar que onde o setor privado não quiser entrar não iremos atuar enquanto sociedade, o que deve aprofundar nossa condição de economia dependente aos países desenvolvidos.
● E para a população mais carente, os 75% de brasileiros que depende dos serviços públicos, principalmente saúde e educação?
O desmonte dos serviços públicos vai significar a transferência para o mercado dos direitos sociais. Aqueles que puderem comprar no mercado terão acesso, os que não puderem ficarão a mercê da caridade privada ou do próprio Estado.
É uma mudança estrutural do país pactuado na Constituição de 1988, na qual a busca da cidadania passa pela garantia dos direitos civis, políticos e sociais.
A reforma não ataca as desigualdades no setor público e, muito menos, do mercado de trabalho. A retórica de combate a privilégios é uma mentira.
● Quais as principais perdas que a proposta impõe aos Servidores Públicos, e quais atingem também os atuais?
A PEC 32/2020 afeta não somente os futuros, mas também, os atuais servidores públicos. Imediatamente, temos o enfraquecimento da estabilidade, pois a perda do cargo poderá ocorrer após decisão judicial colegiada (em segunda instância, quando ainda há possibilidade de recurso), ou pela avaliação de desempenho, prevista da Constituição, porém, até aqui não regulamentada em lei complementar.
Apesar de se ponderar que os atuais servidores estão fora das vedações de direitos e garantias, dificilmente a legislação que regulamenta esses pontos não será objeto de mudança ou até mesmo revogação. Além disso, os novos cargos de liderança e assessoramento indicam a primazia de apadrinhados políticos para a sua ocupação.
Nem todos os impactos serão sentidos no curto prazo ou de forma direta. A aprovação da reforma administrativa, tal como proposta pela PEC-32, pode ter efeitos para os servidores e empregados públicos em atividade, tais como prejuízos para os Regimes Próprios de Previdência Social, redução das equipes de trabalho, com consequente sobrecarga atrelados aos instrumentos de cooperação e aos contratos por prazo determinado e, não menos importante, a concentração de maiores poderes nas mãos do presidente da República para extinção, transformação e fusão de entidades da administração indireta, que pode levar a realocações de trabalho e término de algumas atividades em andamento.
● O governo e o mercado discursam que essa PEC combate privilégios, porque sabem que o cidadão os rejeita. Há algum combate, ou os privilegiados ficaram de fora?
Há uma narrativa sendo construída de que quem tem direitos garantidos, como emprego e renda, é privilegiado. Essa ideia é difundida a partir da naturalização de uma taxa de informalidade que chega próximo a 40% dos trabalhadores e da negação da cidadania a um contingente significativo de nossa população.
A reforma não ataca as desigualdades no setor público e, muito menos, do mercado de trabalho. As cúpulas dos poderes não serão atingidas pela Reforma e pretende-se diferenciar servidores das carreiras “típicas de Estado” dos servidores das atividades que garantem o provimento dos direitos sociais.
Na verdade, a Reforma não irá combater privilégios, mas irá criar novos.
● Como a mudança na carreira pública põe em risco a sustentabilidade dos atuais sistemas de previdência e o pagamento de atuais e futuros benefícios?
Pela proposta, os entes poderão, por meio de lei complementar, vincularem os servidores com vínculo por prazo indeterminado ao Regime Geral de Previdência Social – RGPS. Menos servidores ingressando no serviço público vinculados ao Regime Próprio inevitavelmente causará e/ou aumentará o déficit financeiro e atuarial.
O déficit repercutirá nos estados e municípios na contribuição previdenciária dos inativos, por meio de contribuição extraordinárias e/ou diminuição da base de contribuição isenta.
Além disso, com as novas formas de contratação irá se quebrar a referência da paridade garantida na reforma da previdência de 2003 e de 2019, para quem ingressou antes de 2003, ou seja, irá comprometer a reposição salarial dos atuais aposentados.
● Governo e mídia empresarial discursam que o mercado é mais eficiente que o governo para gerir serviços e empresas, porque o faz com custos e burocracia menores e produtividade maior. Os serviços privados são mais eficientes que os estatais, ou isso é mito criado para defender o ideário neoliberal?
Esse é um mito que precisa ser desconstruído. Os objetivos da Administração Pública são diferentes do setor privado. Ao Estado cabe a busca do bem comum e a iniciativa privada busca a maximização dos lucros.
As estruturas de gestão e o alcance da política pública são estruturalmente diferentes, maiores e mais complexas que no setor privado. Apesar disso, busca-se vender a ideia de equivalência, inclusive comparando estruturas de excelência do setor privado como gargalos do serviço público. Esse debate não é feito com seriedade, pois se esconde os problemas e as incompetências das empresas privadas e carrega-se a tinta nas deficiências do setor público.