As manifestações que surgiram nos EUA, após o assassinato de George Floyd, têm o antirracismo como referência, mas expressam a desigualdade social que assola os afro-americanos,  mas também imigrantes, jovens, desempregados, dentre outros estratos, que não desfrutam do progresso anunciado e desejam a construção de outra forma de conceber o mundo, diferente da atual imposta pelas condições estruturais do capitalismo.

AnaReginaEssa é a análise de *Ana Regina Santos Borges, filiada do SINESP, Supervisora Escolar na DRE SM, especialista em educação inclusiva e voltada ao estudo de relações étnico-raciais, expressa em entrevista concedida ao Portal do SINESP.

Ela também considera que o assassinato de Floyd “ganhou visibilidade e suscitou compaixão, tendo como contexto os índices alarmantes de letalidade causados pelo coronavírus nos EUA e no mundo”, e que, de certa forma, o assassinato revela “o fracasso de um projeto de sociedade”.

As desigualdades produzidas nessa sociedade nega aos cidadãos “o direito inalienável à vida, à saúde, ao trabalho, à dignidade, à autopreservação.” A partir disso decorre uma “marcha pela vida e reivindicação de um novo pacto, que se contraponha à desumanização do racismo, tendo latente a exclusão social.”

Para Ana, esse descontentamento não ocorre apenas nos EUA, “mas também em vários países que atravessam problemas econômicos e sociais, sem desconsiderar os governos autocráticos transvestidos de democracia.” O Brasil está na lista.

Na escola pública, o racismo se manifesta de várias maneiras, afirma Ana. Por exemplo, quando “o aprendente não se vê reconhecido nos livros escolares e na invisibilidade da contribuição do negro na construção do Brasil.” Ela considera que há várias possibilidades de integrar o combate ao racismo nos projetos pedagógicos das escolas.

Veja a entrevista na íntegra:

 

Como você avalia as manifestações nos Estados Unidos em reação ao assassinato de George Floyd?

As manifestações que eclodiram nos EUA têm o racismo como pauta principal, mas é preciso ressaltar que o racismo e a desigualdade social estão imbricados numa relação de causa e consequência, que se retroalimentam.

A partir desse efeito, o capitalismo se estrutura para atestar a própria hegemonia, excluindo cada vez mais minorias historicamente expropriadas, em decorrência do processo perverso de colonização. Além disso, temos observado a condução de outros segmentos à pobreza e que acreditavam no sonho americano pautado no ideário de sucesso, prosperidade e mobilidade social trilhada pelo mercado de trabalho.

Considero que há um substrato nessas manifestações do esgarçamento do tecido social em relação às políticas adotadas pelo atual governo dos EUA, que assolam sobremaneira os afro-americanos,  mas também imigrantes, jovens, desempregados, dentre outros estratos, que não desfrutam do progresso anunciado e desejam a construção de outra forma de conceber o mundo.

 

Como a realidade imposta pela pandemia influenciou a ampla reação social ao assassinato de Floyd?

A pandemia impôs uma nova realidade com o isolamento social, expondo mais a população aos assuntos veiculados nas mídias digitais. Essa forma de reclusão, para evitar a disseminação do vírus, tem produzido inevitavelmente a interação entre as pessoas, que potencializou as manifestações.

O assassinato de Floyd ganhou visibilidade e suscitou compaixão, tendo como contexto os índices alarmantes de letalidade causados pelo coronavírus nos EUA e no mundo. De certa forma, analiso que o assassinato revela o fracasso de um projeto de sociedade, que renega aos cidadãos o direito inalienável à vida, à saúde, ao trabalho, à dignidade, à autopreservação, em um momento de grande fragilidade da própria espécie humana. 

O vírus duramente descortinou semelhanças em relação às dores e vicissitudes da existência, expondo mazelas produzidas e varridas para debaixo do tapete da história, como o encarceramento em massa de afro-americanos; insatisfação com a política interna adotada pelo governo.

A partir de uma igualdade nas desigualdades, decorre a marcha pela vida e reivindicação de um novo pacto, que se contraponha à desumanização do racismo, tendo latente a exclusão social.  Esse descontentamento não ocorre apenas nos EUA, mas também em vários países que atravessam problemas econômicos e sociais, sem desconsiderar os governos autocráticos transvestidos de democracia.

 

A escravidão foi abolida no Brasil há apenas 132 anos, e sem criar condições para a inserção igualitária dos ex-escravos à sociedade.  Que consequências disso podem ser vistas hoje?

As consequências estão estampadas em dados oficiais colhidos pelo governo brasileiro como IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios),  nos quais identificamos uma interseccionalidade entre classe, raça e gênero, mediante múltiplas formas de subordinação, exploração e exercício de poder,  que produzem o abismo social enfrentado sucessivamente pela população negra, por vários séculos,  décadas e anos.

Sem a partilha de riquezas produzidas no Brasil e explicitadas no PIB (Produto Interno Bruto) não haverá igualdade, ademais permaneceremos no campo meramente discursivo. A  inserção igualitária demanda a reversão da  desigualdade abissal na renda média do trabalho e no desemprego entre pretos e pardos; no combate, ao analfabetismo, que é  maior entre pretos e pardos; na diminuição da taxa de homicídios de homens e de mulheres negras, como descreve as últimas edições do Atlas da Violência de 2017 e 2019, apontando o massacre e desprezo com vidas negras. 

Constata-se que é tímida a representatividade de negros nas instituições públicas e privadas   em cargos com visibilidade, prestígio e remuneração condigna, embora mais da metade da população brasileira seja negra.

Por isso, são necessárias políticas de ações afirmativas com abrangência por período amplo, e outras com intervenções mais pontuais, para corrigir tais distorções históricas, que não serão revertidas de uma hora para outra, porque são perpetuadas por séculos, arrancando o ‘direito de ser humano’ dos negros brasileiros.

 

Do total dos mortos em decorrência de intervenção policial, entre 2017 e 2018, 75,4% eram pessoas negras. No entanto, esse grupo — que reúne as categorias de pretos e pardos — representa 55% da população.  Há um genocídio de jovens negros no Brasil?

Sim. Esses dados enfatizam o legado escravocrata e descaso secular do poder público, que tem sua propulsão no racismo individual, institucional e estrutural, que provém do estofo social e se manifesta não somente por meio da intervenção policial, posto que a gênese do racismo é bem anterior.

Depreendemos que a asfixia de Floyd também está presente cotidianamente no Brasil nas abordagens de policiais, que evidenciam violências raciais, divulgadas, às vezes, pela imprensa, mas infelizmente timidamente debatidas e muitos menos ainda combatidas com políticas públicas propositivas.

O que temos, por hora, são covas rasas cavadas em cemitérios, para abrigar corpos negros, em decorrência da omissão do próprio Estado, mantido com pagamento de impostos dos cidadãos, inclusive, do contribuinte negro.

 

Como o racismo se expressa na escola pública?

O racismo se manifesta de várias maneiras, quando o aprendente não se vê reconhecido nos livros escolares; manifesta-se quando invisibilizamos  a contribuição do negro, na construção do Brasil, ou abordamos somente no dia da consciência negra, deixando de espiralar  a temática na educação básica e paulatinamente aprofundando por todo processo de escolarização.

A formação da população brasileira, na contemporaneidade, é um mosaico étnico e precisamos contemplá-lo, no currículo escolar e nos materiais didáticos produzidos. Somos seres plurais e multiculturais.

 

E como combatê-lo?

Considero dois fatores preponderantes para o enfrentamento do racismo: o primeiro é a defesa incondicional da qualidade social na escola pública. Sem a primazia da escola pública não teremos sucesso, pois parcela  significativa da população brasileira estuda em escolas públicas, a despeito de inúmeros ataques contra a educação pública por desgovernos, no cenário atual.

O segundo fator está explicitado na citação do Professor Doutor Kabengele Munanga no livro Pequeno Manual Antirracista de Djamila Ribeiro, que vislumbro como essencial para combater o racismo, pois nem sempre reconhecemos que reproduzimos tal comportamento porque “ecoa dentro de muitos brasileiros uma voz muito forte que grita: ‘Não somos racistas! Racistas são os outros!”’. Aprendi, nas aulas de antropologia do Professor Munanga, que o racismo no Brasil se dá pela negação. Trata-se de uma realidade inegável!

 

Algo mudará no pós-pandemia, o racismo vai crescer ou diminuir? Por quê?

Fica difícil prever como o mundo se comportará no pós-pandemia, haja vista que várias questões fundamentais estão sobrepostas como a descoberta de uma vacina, que daria  margem de segurança para as pessoas poderem circular, mais livremente, sem tantos riscos para a saúde, e ainda temos a economia global em desaceleração,  fato que causa instabilidade para todos.

Quanto à pergunta se o racismo aumentará, penso que esteve onipresente nas relações sociais no Brasil e no mundo, contudo, neste momento, a população negra tem encontrado mecanismos para denunciar, por meio de mídias digitais, organizações negras, imprensa de forma geral.

A pandemia trouxe um legado inquestionável, pois tivemos a articulação em defesa da vida de pessoas em situação de vulnerabilidade social, desvinculada, em algumas circunstâncias, da ação do poder público. Notei um sentimento de irmandade e empatia em relação às pessoas privadas de itens necessários para a própria subsistência.

Esse sentimento não é diferente, na luta antirracista, mormente, necessitamos da mesma alteridade realizada na pandemia para enxergarmos o ‘outro-negro’ como ‘meu-igual’. Sendo assim, a ‘cura do vírus racismo’ depende de uma coalizão sistemática entre negros e não-negros, posto que não podemos tolerar o extermínio de ninguém, tampouco de pessoas que são sobreviventes do colonialismo europeu, e que diuturnamente são acometidas por violências físicas e simbólicas, sendo ambas devastadoras.

 

Como o combate ao racismo pode entrar nos projetos pedagógicos e o que os educadores podem fazer?

Primeiramente, no âmbito federal brasileiro temos a Lei 11.645/08 que trata da obrigatoriedade para incluir no currículo oficial a temática História e Cultura Afro-brasileira e Indígena. Então, esse dispositivo legal, por si só, já legitima a formação sobre a contribuição dos negros na formação linguística, social, cultural e econômica do Brasil, como direito ao acesso de cada indivíduo matriculado nas escolas do país.

No âmbito da rede municipal da cidade de São Paulo temos o Decreto nº 58.526, de 23 de novembro de 2018, que instituiu o  PLAMPIR (Plano Municipal de Promoção da Igualdade Racial), tendo o Eixo 6 que aborda especificamente da Educação e Relações Étnico-Raciais com várias metas, dentre elas: META 1- Viabilizar a implementação das diretrizes das Leis Federais nº 10.639, de 2003, e 11.645, de 2008, por meio do Plano de Ações Estratégicas de Educação para Relações Étnico-Raciais; META 2 - Implementar, na rede escolar pública, a prática de esportes, lazer, recreação e cultura, valorizando conhecimentos e saberes dos povos indígenas e das religiões de matrizes africanas; META 3 - Valorizar iniciativas em educação das relações étnico-raciais, oriundas de instituições de ensino públicas, privadas, terceiro setor, movimentos sociais e outras organizações; META 4 - Garantir a educação escolar indígena diferenciada e bilíngue no Município, com foco no fortalecimento dos Centros de Educação Infantil Indígena (CEII) e dos Centros de Educação e Cultura Indígena (CECI).

Além do respaldo legal (federal e municipal),  o PPP (Projeto Político Pedagógico), insta um posicionamento político à medida que define a identidade da escola e indica caminhos para o ensino com qualidade  e, por isso,  pode se configurar numa potência no combate ao racismo e discriminações correlatas, possibilitando aos educadores  formação e debate sobre a temática, em uma perspectiva crítica e emancipadora, na escola e para além dela; dar voz aos silenciados, realizando a escuta dos atores envolvidos no processo educativo para desconstruir estigmas e construir relações de alteridade; produzir registros que historicizem as narrativas  construídas pela partilha de saberes, numa escola plural, em que todos sejam respeitados e visíveis.

O combate ao racismo enseja uma aposta em uma educação antirracista, visto que não há como prescindirmos dela, para pactuarmos novas maneiras de nos entreolharmos como sujeitos-históricos-culturais, para reconhecermos as injustiças do passado e compreendermos as fissuras no tempo presente; e com sensibilidade projetarmos arranjos no futuro, no qual ninguém será deixado para trás.

A pandemia revelou o ‘cuidado como ethos’ e necessidade de construção de novos laços sociais. Para tanto, será necessária a junção de todos os esforços, sem distinção, com a finalidade de retirarmos a ‘máscara de indiferença’, que  imobiliza, para evitarmos que ninguém pronuncie desvivendo “não consigo respirar” (George Floyd)..

 

AnaRegina Card

 

*Ana Regina Santos Borges

●Graduada em Ciências Contábeis pela Faculdade de Ciências Econômicas de São Paulo e Letras - Licenciatura Plena Português/ Inglês pelo Centro Universitário Fundação Santo André.

●Possui Especialização em Educação Inclusiva pela Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) e Especialização em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

●Possui Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

●Participou como ouvinte do Grupo de Pesquisa em Línguas Africanas na Universidade de São Paulo (GELA).

●Possui publicação na Coleção Gestão Educacional; v1. Gestão e Currículo. Relações étnico-raciais e o papel do coordenador pedagógico: uma proposta de intervenção. São Paulo. Secretaria Municipal de Educação, 2016.

●Possui publicação na obra Repertório Bibliográfico sobre a Condição do Negro no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018.

●Trabalha, desde 2018, como Supervisora Escolar na Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo (SME/DRE-SM).

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