Música em Debate Novembro

No último dia 4 de novembro ocorreu mais uma edição do Música em Debate do CFCL-SINESP. Depois de dois encontros, em que as obras geniais de Paul McCartney, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Paulinho da Viola foram ouvidas e discutidas, foi a vez de visitar o trabalho musical de outros dois gigantes da música nascidos em 1942: Nei Lopes e Milton Nascimento.  

Nei Lopes e Milton Nascimento atravessam a temática da negritude em canções

Não por casualidade, a atenção às composições desses dois gênios da MPB – atravessadas pelas temáticas da negritude, das influências da cultura africana em nosso país e da nossa herança escravista – ficou reservada para experiência e discussão no mês dedicado as discussões sobre a Consciência Negra.

É certo que tais elementos já se encontravam presentes nos versos e sonoridades de Gil, Caetano e Paulinho, mas, para os mediadores do evento, os professores Jean Siqueira e Marcos Mauricio, Nei e Milton poderiam, no meio dessa plêiade, ser tomados como símbolos nesse sentido. 

Nei Lopes é fábrica de canções clássicas do samba

Nei Lopes, nascido no Irajá, subúrbio do Rio de Janeiro, talvez não seja um nome dos mais conhecidos na MPB, mas os amantes do samba o conhecem e sabem de sua importância, principalmente como compositor e letrista, mais do que como intérprete – tanto é que seu primeiro álbum como cantor, chamado A arte negra, só foi lançado em 1980. Contudo, inúmeras de suas músicas e letras foram gravadas por ícones do samba e se tornaram clássicos do estilo, como, por exemplo, Samba do Irajá, Senhora Liberdade, Goiabada cascão, No tempo de Don Don e tantas outras, cantadas por Clara Nunes, Alcione, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, João Nogueira, além de outros nomes expressivos da nossa música.  

Mas os aportes culturais de Nei Lopes não se esgotam em sua produção associada à música, já que o letrista, compositor e cantor também é um pesquisador acadêmico, formado em Direito e Ciências Sociais, e autor de dezenas de livros sobre a história do samba e da cultura afro-brasileira. É autor, por exemplo, da Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, do Dicionário de Antiguidade Africana e coautor, junto com Luiz Antonio Simas, do Dicionário da História Social do Samba, revelando a partir desses trabalhos seu conhecimento literalmente enciclopédico sobre tais temas.  

É dessa inspiração e pesquisa acadêmica que emergem letras que são verdadeiras aulas de história e cultura afro-brasileira, como nas canções O povo em forma de arte e A epopeia de Zumbi, escutadas e analisadas durante o encontro.

Além dessas músicas, a experiência auditiva do Música em Debate também passeou pela ambígua e satírica Fidelidade partidária e pela agradável mistura musical entre samba e ritmos caribenhos presente em Afrolatinô, cuja letra coloca em destaque a herança negra, africana, nos diversos países da América Latina. 

Sincretismo religioso expande alcance das canções de Milton Nascimento

Também nascido no Rio de Janeiro, Milton Nascimento foi, muito jovem, adotado depois da morte de sua mãe, passando a viver na cidade de Três Pontas, em Minas Gerais – daí muitas pessoas pensarem nele como um músico mineiro. O Bituca – apelido recebido na infância por conta de sua expressão ligeiramente carrancuda, bicuda, parecendo um botoque – estudou economia, mas dedicou-se integralmente à música, lançando seu primeiro álbum, Milton Nascimento, em 1967. Neste álbum já estavam músicas que se tornariam verdadeiros clássicos como Travessia, Gira girou e Morro velho, cuja letra e o forte teor social – tema recorrente na obra do músico – foi discutida após a exibição de uma bela apresentação ao vivo do artista em vídeo. 

Outro tema musical e lírico, ressaltado durante o encontro como muito presente nas canções de Bituca, é o religioso, visto pelo compositor sempre sob uma perspectiva sincrética, com inúmeras alusões a elementos da visão do Cristianismo e também às religiões afro-brasileiras e, em momentos posteriores de sua obra, também à cosmovisão indígena. Nesse contexto, para ilustrar essa característica da obra de Milton Nacimento, a música Calix Bento, inspirada em uma canção folclórica mineira análoga a uma oração, foi exibida a partir da versão de estúdio, que apareceu no álbum Geraes, de 1976. Também desse álbum, foi exibido o vídeo de uma apresentação que reuniu Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso e Mercedes Sosa cantando Volver a los 17, música de uma lenda da música latino-americana, a chilena Violeta Parra. Foi um momento de grande beleza e emoção. 

Após a revisitação da longa discografia de Milton Nascimento, alguns álbuns foram sublinhados por conta de sua singularidade. Nesse sentido, O milagre dos peixes, de 1973, ganhou destaque por conta de suas composições mais experimentais, muito ancoradas na técnica de vocalizações característica do canto de Bituca e marcadas pela presença do jazz – como em Tema dos deuses, cuja audição no encontro impressionou pelo caráter arrojado e diversificado da composição.

Missa dos Quilombos, de 1982, álbum que contou com participação de um dos mais respeitáveis nomes da Igreja Católica em nosso país, o bispo Pedro Casaldáliga, foi lembrado por sua expressiva mistura de temas cristãos e afro-brasileiros, tanto na forma quanto no conteúdo das músicas, que se assemelham a uma cerimônia religiosa única e de forte teor social e humanista.

Txai, de 1990, também foi destacado na discografia de Bituca por apresentar o mesmo caráter conceitual de Missa dos Quilombos, mas agora centrando suas canções em aspectos das culturas indígenas, inclusive com músicas cantadas no idioma Yanomami – um verdadeiro tributo aos nossos povos originários.  

Nei Lopes e Milton Nascimento são a expressão genuína do Brasil. Não aquela que está somente na superfície das cores verde e amarela, mas o Brasil que carrega sua história e a história de seus povos, não aquela da marca de uma corrupta instituição futebolística.

Nas músicas desses dois gênios, é possível ler e ouvir a dor, mas também a esperança, o Brasil de Zumbi e de Marias, das trabalhadoras e trabalhadores, das lutadoras e lutadores que enfrentam o fardo deixado depois de tantos séculos de exploração e opressão, enfim, dessa gente que hoje, em novembro de 2022, pode sorrir e sonhar novamente. 

As águas e 1942 rolaram mais uma vez pelo Música em Debate e, com elas, algo de purificação. A arte, costumeira inimiga dos fascismos, sempre eleva, sempre faz lembrar daquilo que deve estar dentro do peito ou caminhando pelo ar. 

Ouça as canções do especial realizado pelo CFCL-SINESP

Todas as músicas ouvidas no Música em Debate de outubro (assim como as que já tínhamos escutado em agosto) estão na playlist “As águas de 1942” no Spotify.

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