Clube de Leitura As Doenças do Brasil

O Clube de Leitura se debruçou, no último dia 29 de abril, sobre a linguagem rica e poética da obra As Doenças do Brasil, do escritor português Valter Hugo Mãe, um dos expoentes da literatura em língua portuguesa na atualidade.

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No terceiro encontro com uma obra do escritor português Valter Hugo Mãe, realizado na última sexta-feira, dia 29 de abril, o Clube de Leitura se debruçou sobre a interpretação de seu romance mais recente, lançado no final de 2021, chamado “As doenças do Brasil”. 

Inicialmente, o professor Jean Siqueira explorou a questão da dimensão espacial e temporal da narrativa, bem como a peculiar estrutura do texto – dividido em duas partes precedidas de uma série de citações e complementado por mais quatro capítulos autobiográficos. Ainda a título de introdução, o professor Marcos Mauricio destacou o papel do narrador do texto – uma narração em terceira pessoa enunciando a partir do mesmo registro linguístico das personagens centrais abordadas pelo livro: a população indígena dos Abaeté.

Conforme evidenciado, essa característica se mostrou a principal dificuldade envolvendo a leitura da obra, uma vez que ela demandou a apropriação de um tipo de vocabulário e modos de expressão muito singulares. Por essa razão, o professor Marcos chamou a atenção para as estreitas relações entre as línguas e as visões de mundo e os processos de categorização delas decorrentes.

Filiadas participam do debate com contribuições inquietantes

Tão logo a palavra foi passada às filiadas presentes – mais uma vez, além dos professores, mais de 20 filiadas-leitoras participaram do evento –, o que se viu foi uma riqueza de abordagens e olhares sobre a obra.

Já no prefácio da publicação brasileira do texto, escrito por Conceição Evaristo, o caráter múltiplo das possibilidades de interpretação da escrita de Valter Hugo Mãe foi colocado em destaque. Ao longo das mais de três horas de encontro, foi possível ver e ouvir esta multiplicidade de leituras e de novos caminhos interpretativos.

A filiada Marta Held, por exemplo, apontou como traço central do texto sua intenção de mobilizar os sentimentos; para ela, toda a poesia contida nas construções frasais de Valter Hugo Mãe, mais do que visar nossa razão, pareciam ali presentes para atingir nossas emoções.

Quanto a esse ponto, Ângela Figueiredo também mencionou ter sido tocada pela prosa poética do autor, o que a levou a ressaltar seu cuidado com a escolha das palavras e sua habilidade em reconfigurar sentidos e, assim, construir imagens ricas e capazes de transcender os usos descritivos da linguagem – habilidade, segundo ela, reminiscente da letra de Manoel de Barros.

Enquanto algumas filiadas tomavam a palavra falada, o chat também ia se avolumando com contribuições importantes para a discussão. Ainda sobre o tópico da importância da linguagem para o texto, Maria Lucia José apontou a dualidade e oposição entre o modo como a língua do homem branco e a língua abaeté eram trabalhadas na narrativa, sendo aquela caracterizada como “Uma língua que explora e domina. Não soma. Linguagem que representa o pensamento, um pensamento de dominação e consumo”.

Também no chat, Maria Cinto sublinhou a importância do tema da imaginação e sua importância para a o povo abaeté.

Não por acaso, Rita, ao assumir a fala, leu algumas passagens do texto que traziam aspectos da cosmovisão do povo abaeté que, justamente, viam na imaginação uma etapa da criação do próprio mundo.

Maria de Lurdes e Elizabeth Castellao problematizaram o fato de Valter Hugo Mãe, um escritor português, narrar uma história da perspectiva de um indígena, de um povo colonizado.

Em outro momento, Maria da Graça, destacou a importância da figura de “Meio da Noite”, um homem negro, um escravizado em fuga, uma personagem certamente central para a história narrada por Valter Hugo Mãe.

Mas, talvez, a principal provocação do encontro tenha ficado a cargo da diretora do CFCL, Alcina Carvalho: de acordo com ela, apesar de toda a beleza e encantamento produzido pela escrita do autor, o tipo de crítica aparentemente tecida por ele à exploração portuguesa e ao genocídio indígena levado a cabo em nosso país, ao mostrar certa resignação por parte da personagem principal da história em um momento crucial de sua jornada, reforçou a ideia de submissão dos oprimidos em favor de uma romantizada e inconsistente superioridade moral destes em relação a seus algozes.

Entre acordos e desacordos, o que ficou da fala de Alcina foi certamente a semente para novas leituras. E se levarmos em conta as famosas páginas de Ítalo Calvino a respeito do que torna uma obra um clássico, a abertura e as possibilidades de ingresso e o trânsito pelas linhas e entrelinhas de As doenças do Brasil talvez já façam do mais recente romance de Valter Hugo Mãe um representante dessa seleta categoria de obras.

Tudo sugere que foi mais uma sexta-feira especial, de muita reflexão, produção e compartilhamento de conhecimento e experiências. E em maio, claro, teremos mais.

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